Saul Bellow: ossos sensíveis
A correspondência de Saul Bellow oscila entre o sarcasmo e o lamento, a provocação e a autocrítica, o azedume e a nostalgia, compondo o retrato de um extraordinário escritor
A correspondência de Saul Bellow oscila entre o sarcasmo e o lamento, a provocação e a autocrítica, o azedume e a nostalgia, compondo o retrato de um extraordinário escritor
Truculenta e sofrida, a correspondência de Saul Bellow sugere que não há grande diferença entre ideias e emoções. “Não sou muito favorável a ideias em histórias”, escreve o romancista, a propósito de Camus. Trotskista na juventude, quase neoconservador na velhice, Bellow proclamava-se não-político, não-ideológico, hostil a doutrinas: “Os sermões são para os pássaros.” Mais do que a ideias-fortes, programáticas, os seus romances, bem como estas cartas, dedicam-se a agudas ironias sobre as ideias dos outros. E assim como o protagonista de “Herzog” manifesta a sua fúria escrevendo a correspondentes imaginários, Bellow dirige-se a grandes cabeças do seu tempo como Alfred Kazin ou Leslie Fiedler para se queixar de agravos, críticas injustas, fracassos conjugais, desamparos.
Tal como nos romances, não faltam passagens de “gravidade cultural”; mas, como nos romances, há uma ênfase na comédia, ou antes, nas incessantes observações sarcásticas que nascem, quase todas, de ofensas, mágoas, choques, zangas. Bellow confessa isso mesmo aos seus pares e amigos, com quem é franco, embora lacónico. Escritores como Bernard Malamud, Philip Roth, James Salter, John Cheever ou o malogrado poeta John Berryman, que ele elogia como “o único profeta que resiste, o último filho verdadeiro de Jeremias”.
Bellow leva uma vida ocupada. Dá aulas, escreve livros e artigos, concorre a bolsas, edita uma revista, viaja, casa-se, divorcia-se, casa-se de novo. E aceita seminários, conferências e digressões, porque tem de pagar impostos, dívidas, custas judiciais, contabilistas, a pensão das ex-mulheres, as propinas dos filhos, despesas médicas. Parece sempre exausto: “Não há tempo suficiente nesta vida nem sequer para dormir o suficiente, diz o pai Karamazov, por isso como poder haver tempo para o arrependimento e a salvação?” Além do mais, sente-se um outsider, um filho-de-imigrante, alguém que nunca estará totalmente integrado: “Nunca soube o que era levar uma vida aceitada. Mas uma vida não aceitada tem perigos terríveis e, como sabes, corrupções horríveis esperam o resistente solitário.”
Tal como acontece em “Herzog”, esta correspondência é o lamento de um homem ferido. Por todo o lado Bellow encontra exegetas absurdos, resenhistas vingativos, amigos moribundos, mulheres ferozes, celebridades anti-semitas, estudantes que lhe chamam “sacana retrógrado”, pessoas que protestam por se reconhecerem nas personagens dos romances. Tudo isto lhe custa: “Tenho pele sofisticada e ossos sensíveis.” Até com Faulkner se indigna, quando o velho sulista o convida a assinar um apelo para a libertação de Ezra Pound: “Está a pedir-me que me junte a si para honrar um homem que advogou a destruição dos meus parentes?” Por cada reconhecimento público, incluindo o Nobel, há uma decepção (adaptações cinematográficas nunca concretizadas com Polanski, com Mastroianni, com Brando), uma humilhação, uma insatisfação. Chicago “cada vez se parece mais com a Sibéria”; fazer férias em Jerusalém “é como consumar um casamento numa lavandaria”; e assim por diante. Os sucessivos divórcios deixam Bellow azedo, e escreve ao amante da mulher, a quem chama Rasputine. Belicoso, provocador, alimenta a gata com artigos de Simone de Beauvoir, “para a curar do cio”.
Esta correspondência (versão mais curta da edição americana editada por Benjamin Taylor em 2010) é então uma sequência de solilóquios: rancorosos, lascivos, emocionados, divertidos. O romancista esclarece tradutores e críticos, comenta questões autobiográficas, faz apreciações a escritores que lhe enviam manuscritos e livros. E aqui e ali surgem momentos tocantes. Ao filho, Adam, Bellow oferece uma colecção de selos dizendo que os países dos selos se extinguem, mas que os pais e os filhos permanecem; numa carta de 31 de Dezembro de 1965 congratula-se por não ter morrido em 1965; a uns vizinhos de infância propõe que se voltem a encontrar “antes de as portas se fecharem”; e por diversas vezes emprega termos em iídiche, por graça, exactidão ou irredimível nostalgia. Nunca isento de autocrítica, lembra a uma amiga: “Quando se trata de sermos duros connosco, a Bíblia está muito à nossa frente.” E quando, a certa altura, admite que está “bem”, acrescenta logo que saber se está “feliz” exigiria uma investigação para a qual não tem tempo.
Pedro Mexia escreve de acordo com a antiga ortografia
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