Cultura

Memórias para colorir

Memórias para colorir
d.r.

Reinaldo Serrano

A data que se aproxima na exata medida em que dela nos aproximamos é, também, um lugar de memória; uma espécie de concha do tempo que abrimos uma vez por ano. Um livro, um disco ou um filme servem muitas vezes para evocar a distância que nos faz sorrir na lembrança de uma noite (bem) passada, de um passado irrepetível. E o cinema pode muito bem ser esse laço que encurta os anos pretéritos do tempo... presente.

Levava o seu tempo a ligar. Largos segundos contados entre o premir do botão e o acender do ecrã. Este, de aprazível dimensão para os anos iniciais da década de 70, ostentava um logo que lembrava um brasão, como que a conferir estatuto ao aparelho; um trevo com uma estrela no meio completava a imagem de marca: era uma Grundig caprichosa – são incontáveis as vezes em que o técnico era chamado para substituir a válvula de som que deixava, não raras vezes, com voz distorcida e roufenha os rostos que passavam pelos dois canais disponíveis. E, ainda assim, foi nela que, ao longo de muitos e muitos anos, fui descobrindo o que de melhor se fazia em cinema e em televisão num tempo em que a cor era uma hipótese muito, mas muito remota.

d.r.

Foi num desses natais junto à caixa que mudara o mundo que assisti, pela primeira de muitas vezes, à exibição de “It´s a Wonderful Life”, de Frank Capra. O filme estreou nas salas portuguesas no último dia de novembro de 1947, pelo que é de todo oportuno assinalar os 70 anos passados sobre essa estreia e sobre a comovente história de George Bailey, um homem esforçado e honesto mas cuja vida parece ter-lhe virado as costas (ou será o contrário?) e que vai contar com a preciosa ajuda de um candidato a anjo para lhe demonstrar que a sua presença é indispensável para todas as vidas em que tocou.

O argumento, assinado por Frances Goodrich, Albert Hackett e pelo próprio Capra, inspirou-se em “The Greatest Gift”, um conto assinado por Philip Van Doren Stern, nome pouco conhecido fora dos Estados Unidos (onde nasceu), pese embora seja internacionalmente reconhecido como notável historiador da Guerra Civil norte-americana. Foi igualmente editor de certa nomeada e o interesse dos grandes estúdios por este conto específico rendeu-lhe pecúlio e prestígio como não houvera tido. Já o filme, que julgo ser incontornável (mais ainda na quadra natalícia) foi considerado como um 100 melhores de sempre na lista elaborada pelo American Film Institute e o mais inspirador de todos os filmes realizados nos Estados Unidos.

Para todo este reconhecimento, dentro e fora de portas, muito terão contribuído os desempenhos de James Stewart, Donna Reed, Lionel Barrymore e os irresistíveis Thomas Mitchell e Henry Trevers. O filme foi nomeado para 5 óscares mas ficou-se pelas nomeações. Ainda assim, mestre Capra venceu o Globo de Ouro para Melhor Realização e “Do Céu Caiu Uma Estrela” (título português) tornou-se com todo o mérito e com toda a justiça um clássico intemporal.

d.r.

O mesmo poderá dizer-se de “White Christmas” (“Natal Branco”), que o grande Michael Curtiz assinou em 1954, indo buscar o título a uma canção que Bing Crosby gravara cinco anos antes, da autoria de Irving Berlin; ambos voltariam a encontrar-se neste filme que conta a história de dois antigos militares que atuam na Broadway quando descobrem que o antigo oficial sob o qual serviram se encontra em dificuldades financeiras na gestão de um hotel nas montanhas onde ninguém vai porque... não há neve. O resto é um conjunto inolvidável de peripécias e romance, intercalados pelo que de melhor se fez em matéria de musicais no cinema. Bing Crosby (Harry Lillis Crosby de seu nome batismal) imortalizou este tema, ainda hoje recordista do maior número de singles vendidos: mais de 100 milhões. O filme teve uma nomeação para óscar de Melhor Canção com... “Count Your Blessings Not Your Sheep” e, mais de 60 anos depois da sua estreia, ainda merece ser visto à lareira, aquecedor ou no calor da melhor companhia.

d.r.

Por nela falar, que tal falar de um dos mais notáveis filmes jamais feitos sobre o mundo da alta finança? Data de 1983, foi realizado por John Landis e tem como protagonistas Dan Aykroyd e Eddie Murphy num elenco de luxo que integra Don Ameche, Ralph Bellamy e Jamie Lee Curtis. Chama-se “Trading Places” no original (um nome deveras inteligente) e “Os Ricos e os Pobres” na versão portuguesa.

A história é sobejamente conhecida: dois veteranos bolsistas têm visões distintas sobre a formação da personalidade: um acredita que o caráter se ergue sob a influência do meio que o rodeia ao passo que o outro duvida desta tese e o teste final transforma-se numa aposta. Ambos engendram um plano para substituir um dos “seus” por um vigarista de bairro e aguardam o desfecho de tais mudanças na personalidade de cada um e dos seus negócios.

O resultado é surpreendente mas a ele só se chega depois de um sem número de peripécias, cada uma mais divertida e inesperada que a outra. Claro que o Natal também é parte integrante desta espécie de parábola sobre o cinismo, Wall Street e a condição humana. Vê-se que nem ginjas e até convida a beber umas quantas (com moderação, naturalmente).

São três hipóteses para o natal que aí vem baseadas nos natais que já foram: sem fantasmas do passado, sem pudores do presente e na esperança de um futuro que se deseja próspero tão branco quanto a paisagem natalícia de Bedford Falls. Bem hajam.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: clubeexpresso@expresso.impresa.pt

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