Foi o homem da Expo-98 e teve um longo percurso de cargos executivos. Mas era como escritor que se revia e se expunha, como mostrava nesta entrevista concedida ao Expresso em outubro de 2017, atravessada por vários prazeres e algumas inquietações
Jornalista, colunista, impulsionador de revistas literárias, a Expo-98, o Centro Cultural de Belém, a Orquestra Metropolitana de Lisboa... eis o currículo executivo de António Mega Ferreira, um multiplicador de tarefas que gosta da ação e da diversidade de executar. Mas foi no ofício da escrita que decidiu apostar grande parte do seu tempo, depois de ter passado por um cancro quando tinha 50 anos. Construiu então uma vasta obra com mais de duas dezenas de livros publicados em várias correntes de escrita: ficção, ensaio, biografia e poesia, a parte que lhe é mais cara e por isso mesmo mais dolorosa. “Em relação à poesia o meu grau de exigência é obsessivo, quase patológico. Não estou em paz com a minha poesia”, dir-nos-á. O último livro, “Itália”, foi realizado em poucos meses depois de muitos anos de leitura e observação da cultura que lhe é mais próxima. Recebeu-nos numa destas tardes — sentado no seu eterno sofá de veludo verde com vista para a colina da Costa do Castelo, em Lisboa — numa entrevista sem guião onde, durante um par de horas, deambulámos ao ritmo das memórias soltas e do prazer da conversa. ‘Práticas de viagem’, o subtítulo deste livro, pode também servir de bússola para o momento que se segue.
Ao prepararmos esta entrevista deparamos com o seu nome: António Taurino. De onde vem?
E é nome próprio. Tem uma explicação muito simples e nunca contei esta história. Quando nasci, a minha mãe queria que eu me chamasse João Miguel e o meu pai António Taurino, por serem os primeiros nomes dos meus avós, paterno e materno. E assim ficou o Taurino, um nome raro.
Mas é do signo Carneiro, nasceu a 25 de março de 1949.
... com ascendente Aquário.
Dá importância a essas coisas?
Importância não dou, mas acho muito interessante a diversos títulos. Na Idade Média, por exemplo, a astrologia era considerada uma ciência e ao ler Dante Alighieri, que era uma esponja de saberes medievais, é muito interessante percebermos as referências astrológicas. São permanentes. Na “Divina Comédia”, metade de um dos cantos é sobre a casa astrológica dele: “Quando o Sol já tinha passado Gémeos”... Talvez eu tenha uma visão um bocado poética, mas penso que a astrologia representa qualquer coisa muito inicial que nos ficou.
Um arquétipo?
Não é bem... É uma coisa que nos ficou muito lá de trás. A cultura é essencialmente aquilo de que nos lembramos depois de termos esquecido tudo o resto. Digamos que nos esquecemos da astrologia, porém ficou-nos no inconsciente, por ter sido durante séculos e séculos um saber importante.
E que mais nos ficou dessa identidade cultural coletiva?
Uma nostalgia das origens do cristianismo. Não há nada mais fascinante do que o exemplo de Francisco de Assis, o apóstolo da pobreza, em tudo contrário ao percurso da história da Igreja Católica. Essa ideia de despojamento, penso que ficou no espaço cristão como uma certa nostalgia desse primitivismo, quase heroico. Independentemente de eu ser crente ou não, e não sou, acho Francisco de Assis uma figura extraordinária. E é uma história maravilhosa do ponto de vista ficcional.
Nunca lhe interessou escrever a biografia de uma figura religiosa?
A única figura em que gostava de ter pegado, e já não pegarei, é Santo António.
Outro franciscano.
Precisamente, outro franciscano das origens e que chega a conhecer em Itália Francisco de Assis. Faz parte dos chamados franciscanos intelectuais que estão no princípio da criação da Ordem. Depois orienta-se numa direção completamente diferente. Em todo o caso não está excluída a hipótese de vir a fazer uma coisa que muitos escritores têm a tentação de fazer.
Que é?
Escrever um livro chamado “Vidas de Santos”. Também gostava de pegar em São Jorge e em Tomás de Aquino, que foi um renovador e fez a articulação entre o cristianismo medieval e a filosofia. É o mestre da Sorbonne, o mestre da universidade de Paris. Além disso, era um tipo que adorava comer e beber e um insubordinado que se revoltava contra todas as regras.
A sua herança republicana, jacobina, que veio por via do seu pai, é uma matriz que se mantém?
Mantém-se absolutamente. Sou ferozmente republicano e, nalguns dias em que oiço certos políticos a falar, ainda tenho fortíssimos laivos jacobinos. Claro que racionalmente não se pode ser pode ser jacobino no século XXI.
Há uns anos, numa outra entrevista, afirmou: “Tenho uma certeza
relativa de que Deus não existe.
” Pelo que verificamos, continua
com esta certeza.
Como disse, é uma certeza relativa. Não é mais do que isso. E aqui coloca-se a aposta de Pascal: ‘Aposto que ele não existe e arrisco-me a perder tudo. Mas não faz mal nenhum’.
Nunca teve uma dimensão espiritual?
Acredito na poesia. Não há dimensão mais espiritual do que a poesia. E apesar de não ser crente adoro os poemas de São João da Cruz e, como já disse, tenho um fascínio enorme por São Francisco de Assis. Mais espiritual do que isto, francamente, é impossível.
Publicou dois livros de poesia e depois decidiu que não voltaria a publicar. Porquê?
Tinha de ter a certeza de que a minha poesia era boa. E não tenho.
É mais exigente com a poesia do que com a prosa?
Claro! É a arte maior. É a arte da decantação. Digamos que em relação à poesia o meu grau de exigência é obsessivo, quase patológico. Não estou em paz com a minha poesia, e não estando em paz, o melhor é não publicar porque já sei o que me vai acontecer.
E que é que lhe acontece?
Noites sem dormir, uma angústia terrível. A poesia é, de facto, a disciplina suprema. É um território que nem sei nomear. Como dizia Wallace Stevens, é aquilo que devia chegar à “transparência dos lugares”. É conseguir chegar abaixo do osso de qualquer coisa que não é osso. Aonde? Não sei.
Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: ASoromenho@expresso.impresa.pt
Assine e junte-se ao novo fórum de comentários
Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes