Cultura

Paulo Mendes da Rocha: “A independência da mente é o nosso único espaço privado”

Paulo Mendes da Rocha: “A independência da mente é o nosso único espaço privado”
alberto frias

Conversa com Paulo Mendes da Rocha, o arquiteto brasileiro que projetou o Museu dos Coches e que acredita que a educação é a grande revolução do futuro

Não precisa, não quer e não gosta de falar na sua biografia. É um interlocutor rebelde que nos interroga e interpela ao diálogo. A sua inclinação maior continua a ser a arquitetura, disciplina em construção permanente que lhe permite uma deambulação filosófica por vários territórios.

Durante os anos da ditadura militar, de 1964 a 1985, Paulo Mendes da Rocha foi impedido de projetar e de ensinar, ele que era professor de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e já se tinha revelado como um dos mais eminentes nomes da “nova” arquitetura brasileira, ao assinar o emblemático edifício do Clube Atlético Paulistano, três anos depois de se ter formado. Para poder trabalhar juntou-se a ateliês mais pequenos, participando em projetos onde não podia assinar, mas continuando assim a exercitar o olhar, porque é um homem que gosta de observar o mundo a partir do gesto que antecede a ideia de concretizar: “Necessidades e desejos, tudo nasce a partir deste lugar”, dir-nos-á.

Nasceu em 1928, em Vitória, uma cidade portuária, no estado do Espírito Santo, onde o pai, engenheiro, trabalhava em recursos navais e hídricos, e absorveu a disciplina de arquitetura a ver as grandes obras de engenharia. É esta a escala que o irá marcar. Tornou-se um dos mais consagrados arquitetos brasileiros — recebeu o Pritzker e foi galardoado com o Leão de Ouro na Bienal de Veneza pelo conjunto da obra — apesar de a quase totalidade da obra de Paulo Mendes da Rocha ter sido construída em São Paulo, a cidade onde passou grande parte da sua vida.

Passou por Lisboa para visitar uma das raras obras que realizou fora do Brasil, o Museu Nacional dos Coches, feito em parceria com o ateliê de Ricardo Bak Gordon. Queríamos ouvi-lo contar a sua história para perceber a matéria de que é feito este brasileiro de 89 anos que marcou gerações de arquitetos. Visitámos na sua companhia o museu que ele mesmo desenhou e que o continua a surpreender e a encantar. É sobre isso que quer falar: “Não há nada mais interessante, nem mais intrigante, que eu tenha feito do que esta obra. E não destacaria tanto a questão de ser fora do Brasil.”

Essa afirmação tem que ver com o facto de Portugal não ser igual a nenhum outro território fora do Brasil?
Precisamente. Portugal, para nós brasileiros, nunca é outro lugar.

O que é então?
É outra dimensão. Uma forma de sermos nós mesmos de outra maneira.

Apesar da língua, são grandes as diferenças entre os dois países. Quando veio pela primeira a Portugal como sentiu essa proximidade e essa estranheza?
[Pausa] Não queria ser, digamos, agressivo... Mas se essa estranheza existir, ela é reveladora de uma grande falta de educação. A impressão que tenho é que as relações entre Portugal e Brasil estão sempre em construção e deveriam ter como paradigma importante uma ideia conjunta de educação. Essa ideia deveria ter surgido desde o início da nossa experiência comum, porque o que sinto é que essa estranheza não tem qualquer cabimento sendo eu originário de qualquer parte do mundo onde se fale a língua portuguesa. A verdade é que nunca construímos uma educação conjunta e é neste sentido que posso dizer que somos muito mal-educados.

Antes de iniciarmos esta conversa, mostrou-nos o museu, falou da relação com a água, e da importância de construir aqui. Queria que me contasse se a emoção da descoberta da cidade foi equacionada. Ou essa matéria não faz parte da obra?
Sobre a emoção você tem toda a razão. Toda a gente sabe que foi daqui que saíram as caravelas para o Brasil... Mas para quem é formado enquanto arquiteto nunca são propriamente descobertas. Apesar de haver uma grande emoção quando se chega ao lugar, já sabia que era assim.

Coches. “A escala serve para tudo. Tudo é posto na equação de fazer”, defende o arquiteto, que não gosta de críticas à monumentalidade do edifício que projetou para Lisboa
alberto frias

A experiência física não conta?
O arquiteto, conhece. Na mente já sabe. Aquilo que se chama projeto é, justamente, a hipótese de a coisa existir antes que ela se construa. A História é um projeto realizado. Lisboa, assim como Veneza, por exemplo, foram fundadas nestes lugares, precisamente, porque houve um projeto antes. O projeto primordial é: “Vamos ficar aqui. Aqui faremos uma cidade.”

Nunca podemos pensar em acasos?
Vocês podem, o arquiteto não. Para nós não existe essa espécie de coisa mágica. Uma rua ou uma esquina aparecem por causa da mecânica, dos fluidos, ou de como vão escoar as águas fluviais. Depois, como se faz o pavimento, uma vez que os veículos têm de andar e ao mesmo tempo o pedestre exige não afundar o pé na lama, portanto desenha-se uma calçada com pedras. Todas essas coisas são equacionadas e vão determinando o desenho da cidade... Penso que toda a gente deveria saber conceitos fundamentais de urbanismo. Deveriam ser ensinados às crianças tal como é ensinada a alfabetização.

Por ser uma maneira de viver a cidade e de aprender o lugar?
Antes que seja uma maneira de viver a cidade, é uma maneira de viver. O homem só vive em cidades. O planeta natureza, por si, é inabitável. Um inferno. Todo o habitat humano para nós tem de ser construído. É uma transformação da natureza. Essa ideia do espanto que causa o desenho das cidades não faz sentido. O cientista, quando vislumbra que a matéria é feita de moléculas, átomos, ele, o cientista, não fica espantado. Algum espanto pode surgir com a ignorância dos outros. “Como nós não vimos isso antes?” São justamente todas estas visões que nos levam a pensar, que para nós a natureza não é uma paisagem. É um conjunto de fenómenos.

A dimensão da natureza num lugar como é o Brasil, por exemplo, faz com que se viva a escala de uma maneira diferente. Como é que essa escala é transportada para o seu projeto?
Porque diz que o Brasil é grande?

E não é?
Mas ninguém mora no Brasil. As pessoas moram numa casa.

Portanto, tudo é relativo?
Não é relativo, é uma questão de sabermos ou de cultivarmos a ignorância. Não vê que as coisas que eu estou a dizer você já sabia?

Mas não sei como pensa nem sei o que me vai responder. É a primeira vez que estamos a conversar.
A conversa pode ser interessante, mas não se trata de como eu penso. Não lhe disse nada que você já não soubesse. Pode até estar dececionada com esta nossa entrevista.

O arquiteto está a provocar.
Então, o que você pode dizer que eu não sabia, porque de facto não sabia, é que o recinto que a cidade de Lisboa tinha destinado para construir o novo Museu dos Coches, por exemplo, estava assente num terreno em frente ao Tejo, desenvolvido em grande dimensão, e que na face justamente oposta ao terreno confronta-se com a Rua da Junqueira, onde existe uma parte tombada com velhas casas. Porém, justamente na esquina da praça do Governador das Índias Ocidentais, há esse enclave, aqui sim é um enclave, com uma pequena parte do terreno, que já tinha destruído as casas tombadas, e chegava até à esquina. Essa configuração, um tanto inesperada, eu por exemplo, não sabia. Mas, por exemplo, as dimensões do que se chama um coche antes de ver aqueles que eram da coleção especial daqui, extraordinária, todos nós conhecemos. Até hoje a rainha da Inglaterra quando aparece em qualquer jornal, muitas vezes desloca-se numa dessas carruagens. Portanto, todo o mundo sabe o que são artefactos de grande dimensão. Portanto, eu já tinha visto que este museu destinado a preservar esse tesouro, agora de forma definitiva, devia ser blindado, climatizado, com um controlo absoluto de atmosfera capaz de conservar estes artefactos, só podia ser uma caixa enorme.

Como se fosse um estojo?
Exatamente. Um estojo para guardar esse tesouro. Que se fosse, construído no chão, tolheria toda a vista do rio, justamente numa área que já era toda ela museológica. Porque aqui se encontra o Mosteiro dos Jerónimos, o Centro Cultural de Belém do Gregotti e toda a beleza e a história da cidade: a Torre de Belém. O que fez com que eu pensasse imediatamente de que essa caixa extraordinária, se fosse elevada do chão, para não tolher a vista do rio, já que ela seria enorme, seria muito bom. É assim que vai surgindo a ideia da construção. “Como levanto do chão uma construção tão volumosa?” Aqui começam as especulações sobre a possibilidade de estruturas, composição de grandes fundações com estrutura leve, metálica, montada com facilidade depois... Um arquiteto que tem experiência consegue raciocinar só na imaginação.

A ideia não vem do desenho?
Não. A mente é que desenha. Quem pensa que um projeto é um rabisco que se desenvolve, está muito enganado. Quando se rabisca e desenha, já é para tomar nota de uma ideia já feita e que não surge esfregando o lápis no papel. Tal como qualquer escritor, qualquer poeta ou qualquer romancista, sabe que não é escrevendo palavra por palavra que consegue fazer um romance ou um conto. Tem tudo na cabeça. Só depois usa as palavras do léxico, a sintaxe da sua língua, como recurso técnico para construir o seu discurso. É a mesma coisa na arquitetura. E é por isso que a arquitetura exige um estudo especializado e é uma escola extraordinária. É um modo de imaginar antes aquilo que nós chamamos a realização de necessidades e desejos humanos. Uma coisa é necessidade, outra é desejo. Entendendo como necessidade aquilo que é estritamente programático. Porém, o desejo, que entra em simultâneo com a necessidade, e chamemos desejo ao indizível, é a dimensão artística, que alimenta a nossa existência. O homem tem, necessariamente, uma dimensão artística em tudo o que faz. O que é que são as catedrais góticas, por exemplo? Dizem os escritores que gostam de avaliar os feitos humanos que as palavras estão para um escritor como as pedras para um construtor de catedrais.

Antes de ser construção, a arquitetura é um discurso sobre o modo de pensar o espaço?
Claro. [Aponta, olhamos em redor]. Tudo isto que está aqui é um discurso. Veja essa água, posta aqui no teto do auditório, para ser vista de cima neste edifício onde estamos. Esta água, não é senão outra coisa do que um testemunho das águas que estavam aqui antigamente. Quando o rio chegava até aqui onde ficava a rua da antiga alfândega. Todo este território é o que chamamos ganhados do mar e tudo isto é história do lugar. E não é de um lugar específico, para voltar à ideia do espanto. É todo o lugar onde está o homem à frente do mar. Vejamos Veneza, como o lugar mais extraordinário desse exemplo. Necessidades e desejos por excelência estão na base da construção de Veneza. Senão, porque diabo iriam fazer aquela cidade em cima daquela lama toda?

E porquê?
Se você pudesse descarregar mercadoria, em vez de lá em baixo, em Itália, e pôr tudo em lombo de mula para vender para a Europa, se você pudesse fazer com que o mesmo navio, que trazia aquelas mercadorias da China, ancorasse no coração da Europa, seria uma maravilha. Isso só seria possível através do Adriático, desde que se chegasse a um lugar que era um lamaçal. Para acontecer teve de se construir uma cidade. Portanto, Veneza existiu, antes que se fizesse. Isso é o que se chama projeto. Lá está. O projeto é a coisa feita antes na imaginação.

Necessidades e desejo de criar uma cidade?
Entendeu? Tudo parte daí. Estamos numa permanente revolução porque a ideia de necessidade e desejo não se realiza sem mais nem menos. Temos de enfrentar o pior da natureza, que somos nós mesmos. Não lhe parece?

Mas também há sempre uma centelha de otimismo na raça humana. Ou chama-lhe utopias?
E porque não chamar utopias? Não acho que o possível e o impossível sejam contradições, por mais que pareçam que sim. Se você imaginar como cheguei aqui ontem, num voo a mil quilómetros por hora, a 12 mil metros de altura, sem oxigénio, numa atmosfera toda controlada, 200 cretinos, sentado ali, a fazer aquilo que levava meses a fazer e era um tanto imprevisível, porque dependia se havia ventos favoráveis ou não, e tudo isso em 400 anos, que são poucos anos na história da Humanidade, é uma coisa fantástica... É uma luta permanente e uma revolução permanente. Principalmente, porque o grande embate é político. Insisto neste ponto: Tenho a impressão que, de facto, a grande questão da revolução que estamos vivendo e onde se processará um verdadeiro sentido revolucionário está na educação.

Foi professor de arquitetura...
Isso é uma coincidência. Não tem nada a ver com o que estamos a falar. Não sou educador, nem tenho nenhuma vocação para professor. Mas como fui convidado para dar aulas na universidade de São Paulo por um arquiteto muito ilustre, que foi quem criou o curso de arquitetura com uma simples cadeira na Escola Politécnica de São Paulo, o famoso Vilanova Artigas. Quando me convidou para ser seu assistente, aceitei porque percebi que era uma experiência que não podia deixar de gozar, no bom sentido da palavra.

Para aprender um novo modo de pensar a arquitetura?
Precisamente. Para conviver com aquele discurso e conviver num ambiente universitário e escolar. Eu era, e ainda sou, muito levado pela intuição. Achei que um pouco de estudo não me faria mal. Assim, depois de me ter formado em Arquitetura, voltei a estudar e a preocupar-me com a ideia de formação. Particularmente por ser a Escola da Universidade de São Paulo de Arquitetura, que é muito peculiar. Foi estruturada por duas forças dentro da universidade, ambas fundadoras na questão da arquitetura e que são engenharia e o plano crítico, que veio da faculdade de Filosofia, Ciências e Letras. Era uma escola exemplar e tinha de aceitar. Principalmente porque eu tinha uma certa ideia, mais ou menos clara da importância de todas essas coisas. O meu pai era um grande engenheiro, foi um grande engenheiro, é um grande engenheiro, apesar de já ter morrido há muito tempo, e eu convivi desde muito cedo com esse clima da monumentalidade das grandes obras.

Por isso nunca teve medo da escala?
Pode-se até ter muito medo, mas tem de se fazer. A escala serve para tudo. Mesmo se tivermos de fazer uma simples casinha. Tudo é posto na equação de fazer.

alberto frias

A sua consciência sobre a importância da arquitetura aconteceu nesse convívio com o trabalho do seu pai?
Todo o nosso conhecimento vem desde o instante em que nascemos. As memórias de infância são fundamentais. É o ingrediente daquilo que chamamos o inconsciente. Na urgência de ter de fazer alguma coisa, é o momento de angústia onde nós convocamos o nosso conhecimento. Ele surge nessa vocação. Coisas da memória que estavam guardadas... Esse inconsciente guardado é uma parte muito importante porque, quando é exigido na angústia de ter de fazer, esse fruto, digamos assim, aparece. Para não fugirmos ao nosso assunto, arquitetura, ideia e coisa, e que é uma das condenações do homem, transformar a ideia em coisa, porque senão ninguém sabe da ideia que você teve. É um raciocínio sobre uma questão tão discutida que se chama público e privado. Lembra-se que estávamos conversando que as palavras para um escritor são as pedras da catedral e que todo o discurso é construído? Esse construído quer dizer que todo o seu discurso tem de se transformar numa coisa.

Nem todos são construtores.
Pois é. Mas se você for poeta e nunca escrever, ninguém pode imaginar o que você está pensando. A coisa construída é o discurso sobre o conhecimento. Portanto, essa condenação de transformar a ideia em coisa — seja a dança, o poema escrito, a letra, a casa — tem de acontecer. A mente tem de ser materializada para que seja vista pelo outro.

E precisa de tradução? A arquitetura contemporânea, por exemplo, precisa de tradução.
Só se for má arquitetura.

Nem sempre o público percebe a formulação do arquiteto, a ideia que se transformou em coisa. Por exemplo, para os lisboetas, o que será este edifício?
Vamos ver o que vão dizer. Em todo o caso deviam saber.

Sabia que não foi compreendido? Nem toda a gente aceitou, foi muito discutido.
Mas quando começarem a usar esta passarela suspensa, que atravessa a linha do comboio a sete metros de altura, quando chegarem ao segundo patamar e perceberem que daquela altura é que se desce dentro e aquilo é o teatro, como diabo é que não vão compreender que a passarela faz parte do museu?

Uma das críticas que fazem tem a ver precisamente com as questões da escala.
Essa é a mesma mentalidade de quem construiu os Jerónimos. Não era enorme?

Voltando à questão da educação, queria falar numa frase sua que li numa entrevista. Dizia: “É no caminho para a escola que se aprende a cidadania.” É um gesto social?
Também, mas não só.

Como foi o seu caminho para a escola?
Bem, nas minhas memórias, tenho duas histórias que considero particularmente interessantes. Quando eu era muito pequeno, vivia em Vitória e ia a um jardim da infância. Ficava numa rua lindeira, lateral de um grande parque ajardinado, com desenho republicano. A escola era muito bem feita e tinha uma mesa redonda, com cadeirinhas em volta da mesa e a professora no meio. Cada professora tinha o seu grupinho de alunos, e cada grupo ficava em mesas de cores diferentes. O clima lá é muito quente, e o parque era maravilhoso, muito bem arborizado, com árvores incríveis. E o que fazíamos? Um servente ou dois pegavam na mesa, atravessavam a rua e punham debaixo do arvoredo. E os meninos pegavam nas cadeirinhas, punham na cabeça, atravessavam como se fossem formiguinhas e sentavam-se em volta da mesa, agora nas árvores, e ali continuavam as aulas quando o tempo estava bom. Acontece que, na outra rua perpendicular ao parque, havia um quartel da polícia e eles faziam a mesma coisa. Um sargento pegava numa metralhadora, outro fazia não sei o quê, levavam para debaixo de uma árvore do parque, os soldados ficavam em volta, ficavam dando instruções. Nós tínhamos a nossa instrução para os miúdos ali e os militares também. Então, enquanto a professora dizia... — o que será que me dizia? — nem me lembro. Mas lembro-me das metralhadoras e dos militares, a 30 metros, falando de coisas que me impressionava muito mais. Esta é a memória que tenho do meu jardim de infância.

E a outra história?
Tem razão. Apesar de um homem de poucos recursos, digamos, da crise de 29 e 30, o meu pai, engenheiro, perdeu quase tudo, passou dificuldades como toda a gente e separámo-nos. Foi nessa ocasião que eu andava na tal escolinha de Vitória, porque ele voltou para casa dos seus pais, que moravam lá. Entretanto, em Vitória — enquanto o meu pai foi correr o mundo para ver o que iria fazer —, ficámos com a minha mãe. Só passados uns anos o meu pai se radicou em São Paulo e assim que pode mandou-nos buscar. E nós fomos morar assim, pobres, para a famosa Avenida Paulista, que é uma das ruas principais da cidade de São Paulo. Nessa época, a Avenida Paulista era feita só de palacetes de milionários, e nós fomos morar os quatro — os meus pais, eu e o meu irmão — num quarto de uma pensão que ficava num desses palacetes. A minha escola, que é hoje a sede de um banco, ficava a um quilómetro dessa pensão e eu andava um quilómetro na Avenida Paulista e voltava. Ou seja, durante os 12 primeiros anos da minha vida de estudante em São Paulo, eu andava a pé na cidade, vi surgir na minha frente aquilo em que veio a tornar-se aquela artéria da cidade. Demole esta casa, faz um prédio...

Assistiu à grande transformação da cidade.
E nasci em Vitória do Espírito Santo, que é uma cidade portuária de grande importância no Brasil, e também, desde menino, sempre assisti aos trabalhos do mar. Portanto, eu tive uma escola, na vida prática, muito forte, sobre o sucesso da técnica... O navio que flutua com mercadorias do mundo inteiro. Uma cidade tão frágil, onde atracava um navio que vem da Itália e era um navio imenso... E mais uma coisa interessante, quem vai buscar o navio lá fora para entrar no canal caprichoso é o que se chama um prático, que vai num barquinho do lugar. Aquele tesouro, que é o navio, ele mesmo é a mercadoria que está lá dentro. O comandante entrega a um navegante do lugar para pôr tudo lá dentro e depois devolver lá para o mar. Essa é a confiança total que o homem tem no conhecimento objetivo da natureza enquanto fenómeno e isso aprendi da infância.

Voltando a São Paulo, a imagem da cidade como era antes pode ser lembrada com alguma nostalgia?
Nenhuma. Nem sei bem o que quer dizer nostalgia. Nunca perdi nada. Tenho a impressão que a nostalgia só surge para aquele que sabe e tem consciência das coisas que perdeu. Eu nunca perdi nada. Os filósofos dizem uma coisa que eu gosto muito sobre o que estamos falando agora.

Qual é?
Que a morte está na nossa frente como inexorável, o que faz com que tenhamos a seguinte consciência: Sabemos que vamos morrer, mas ao mesmo tempo, sabemos que não nascemos para morrer. Nascemos para continuar. Eis então a questão da educação. Continuamos no outro.

Quando visita a cidade com as camadas todos de tempo, o senhor que também é um construtor, pensa que a sua obra vai fazer parte dessa continuação?
Claro. A nossa experiência é a totalidade da experiência humana.

A minha pergunta era no sentido de que quem constrói deixa a sua marca.
Dez anos depois de eu morrer ninguém se vai lembrar que esse edifício é meu. Vai dizer apenas que é o Museu dos Coches. Pode até enganar-se no nome do arquiteto.

Não tem importância para si?
Acho que não.

Não tem nenhuma vaidade de reconhecimento.
Fico muito feliz e muito alegre quando me dizem que está bonito. E eu também estou muito satisfeito. Já reparou na luz? Não é bonito? Isso também se deve aos colaboradores que trabalharam comigo. Claro que esse reconhecimento me faz muito feliz. Mas não acho que seja uma questão de vã glória. A população em geral não sabe, e mesmo que mencione o meu nome, não sabe bem o que quer dizer.

Mas o lado da celebração é simpático. Recebeu os maiores prémios de arquitetura, gostou de os receber.
Sim. É uma satisfação. O seu reconhecimento, por exemplo, que me está entrevistando, me dá um grande prazer, um grande estímulo. Mas eu não vejo, ou vejo um grande perigo se ficar alimentado. Pelo contrário... Você é que é responsável, já que está me entrevistando. Que diabo vai fazer com isso? Porque a graça desta entrevista não é o que eu estou dizendo. É o que você vai fazer com ela.

No filme que a sua filha Joana Mendes da Rocha realizou sobre a sua obra, “Tudo É Projeto”...
Viu?

Vi.
Gostou?

Gostei.
Pois é. Ela é que inventou tudo.

Há uma cena muito bonita, quando ela entra na casa que construiu em São Paulo para a sua família morar e filma o interior enquanto conversa com outro dos seus filhos sobre a importância daquele espaço durante a infância. O que sentiu ao ver os seus filhos falar assim da casa onde cresceram?
Eu já sabia. Fiz a casa para eles, tinham de gozar aquilo. A Joana, por exemplo, nasceu naquela casa. Depois casou-se, tem três filhos, viveu em muitas outras e agora ela julgou achar graça no que aquela casa tem e nenhuma outra tinha.

O seu filho descreve que o espaço era aberto, não havia privacidade. Refere, dizendo que hoje compreende que no projeto dessa casa houve uma ideia muito generosa de partilha com a família.
Foi uma brincadeira que fiz.

Foi um dos seus projetos mais reconhecidos.
A estrutura é muito bonita. Foi um calculista maravilhoso que a fez. Sobretudo é uma casa divertida. Uma criança não deve crescer numa coisa muito rigorosa.

Foi por isso, para ser divertida?
Acho que sim. Nunca tinha visto tantas crianças juntas. Ainda por cima, os meus filhos!

Não era um risco? Imagine que algum deles era mais reservado e precisava de privacidade.
Nunca pensei que tivesse de haver privacidade, desde que a convivência não fosse agressiva. Muitas vezes, a promiscuidade é mais emocionante na arquitetura do que a privacidade. Digo isto, pensando que é o castigo maior que eu sempre ouvi dizer de uma prisão é pôr alguém numa solitária. Eu acho que a convivência é melhor que a privacidade. A privacidade é muito mais uma questão mental do que física. Há um episódio de que gosto muito. Um dos maiores escritores brasileiros, chamado Graciliano Ramos, esteve preso muito tempo durante a ditadura militar, por ser comunista. Um dos livros que escreveu, muito bonito, chama-se “Memórias do Cárcere”. Esses prisioneiros políticos foram todos soltos num certo dia e os jornalistas estavam na porta à espera. Quando saiu, a coisa que menos queria era dar uma entrevista, mas alguém perguntou: “Agora que o senhor está livre, como se está sentindo?” Graciliano respondeu: “Sou escritor. Escrevo bem na prisão como fora da prisão. Tanto faz.” E tem toda a razão. A grande privacidade, a privacidade fundamental, dá-se na independência da sua cabeça. A mente é o nosso único espaço privado.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: ASoromenho@expresso.impresa.pt

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