Cultura

Modernismo enquanto problema

Resposta da curadora da exposição “José de Almada Negreiros: Uma Maneira de Ser Moderno”, patente na Gulbenkian, ao texto “Revisitar Almada”, de Diogo Ramada Curto, publicado na edição de 29 de abril

MARIANA PINTO DOS SANTOS

Sem título, 1940, guache sobre papel, 61 x 41,2 cm (colecção particular) [cat. 340]

A exposição “José de Almada Negreiros: Uma Maneira de Ser Moderno”, que encerrará a 5 de Junho, foi oportunidade para, a propósito e através da obra de um artista, poder reequacionar o conceito de modernismo e ao mesmo tempo trazer novas perspectivas sobre a obra de Almada à luz do debate sobre modernidade e suas derivações.

“Modernismo” é tradicionalmente entendido como um movimento artístico, mas foi também uma teoria que via a arte enquanto conquista progressiva da autonomia, conduzindo à pintura abstracta, descurando processos e contextos sociais, económicos e políticos, e que deu origem a um cânone de critérios formalistas que hierarquizou geografias, obras e actores da história da arte. Esta narrativa dominante foi naturalizada e seguiu uma lógica de produção de exclusões, nomeadamente nos países ditos periféricos, o que explica que neles se tenha desenvolvido em anos recentes uma historiografia que redesenha o mapa da história da arte, diversificando perspectivas e identificando os problemas do discurso instituído.

O termo “modernismo” foi usado por artistas, agentes políticos, críticos e historiadores. Por isso, constitui-se como objecto de estudo: foi um termo operativo no passado e que podemos e devemos interrogar no presente para que se impeça a sua fixação num significado único. As novas abordagens, que não vêm apenas da história da arte, propõem uma perspectiva mais abrangente que fala não de um modernismo mas de vários, porque houve diferentes maneiras de entender o que era fazer o “moderno”, fazer o novo. Foram maneiras contraditórias — porque por vezes se antagonizaram propostas artísticas; experimentais — porque o ímpeto de fazer o novo veio com uma vocação de testar os limites da arte e dos seus géneros; híbridas e eclécticas — porque foram fruto de apropriações e reinterpretações.

A exposição de Almada trabalha um percurso não cronológico e desierarquizado (quanto às linguagens artísticas) das suas obras, realçando o seu carácter experimental e performativo e focando, entre outros temas, o cinema, o humor e a narrativa gráfica (nos seus desdobramentos e transferências para a arte pública, artes gráficas, pintura mural, cerâmica, além da pintura, desenho e escrita) enquanto linguagens estruturantes da produção artística do próprio Almada e da modernidade, procurando contribuir com a selecção de obras para o debate sobre os lugares-comuns do modernismo. Nesse sentido, enquadra-se nas análises transnacionais e horizontais da história da arte, que estudam a produção de hierarquias e a circulação de informação, bem como a dissonância e a descontinuidade de que é feita a história.

É por isso necessário responder à interpretação que Diogo Ramada Curto (D.R.C.) fez do argumento que proponho no texto que assino no catálogo da exposição (na Revista E de 29/4/2017). Não se trata de afirmar que Almada ou outro artista contribuiu para o policentrismo. Não discuto que Paris foi para Almada, como para tantos artistas, um centro — um centro que deve ser analisado no que teve de mito e significado simbólico —, e foi-o por várias evidências e razões, bem mais relevantes do que o simples desejo de ler a “Paris Match” quando ia ao café (como refere D.R.C.). O meu argumento é que é a história da arte que tem de descentralizar o seu discurso e problematizar a dicotomia centro-periferia. A noção de “rede transnacional” é também mal entendida por D.R.C.: a rede não é o conjunto de relações internacionais que um artista estabelece (embora também possa ser). A rede é o circuito de informação que se move e que chega a diferentes lugares onde é diferentemente interpretada e recriada. E que existe mesmo que um artista trabalhe em isolamento, porque há sempre um diálogo que se estabelece com o mundo em que produz. E por isso é empobrecedor abordar a obra deste ou doutro artista afirmando, como faz D.R.C., que ela está em posição de dependência subalterna face a modelos externos, porque os modernismos não se reduzem a variantes do modelo do centro. Foram diversificados, disseminados, reinventados, transformados em diferentes zonas do globo.

Os outros três pontos que D.R.C. enumera — que relação teve Almada com África, a relação entre géneros e a relação do modernismo com o fascismo — enquadram-se em problemas teóricos fundamentais, que, aliás, as teorias pós-coloniais e feministas levantaram, muito contribuindo para a pluralização do conceito de modernismo. Sobre eles, D.R.C. retira conclusões de alguns depoimentos anedóticos, faltando confrontá-los com documentação e a obra plástica do artista, de resto presente no catálogo e na exposição. Como exemplo, refira-se que D.R.C. escreve que há “poucos traços da presença de África” na obra de Almada, mencionando o retrato da mãe. Ora mesmo ao lado do retrato da mãe podem ser vistas na Gulbenkian duas outras obras que também problematizam a referência identitária africana de Almada [cat. 340 e 342] (mas há várias outras). Fica também esquecida por D.R.C. a exposição de comparação entre arte moderna e “arte negra” que Ernesto de Sousa organiza, com colaboração de Almada e Diogo de Macedo, em 1946.

Parece pouco proveitoso que a história, ao abordar esses temas, contribua para análises maniqueístas e juízos de valor dos actores de uma época. O trabalho a fazer será antes o de estudar o contexto de produção artística numa sociedade que era estruturalmente machista, colonial, racista. A partir daí poder-se-á analisar quais as motivações e características dessa sociedade, como se movem nela os seus actores, incluindo os artistas; quando é que a obra plástica ou a obra escrita permitem notar desvios que constituem disrupção na ordem do discurso; ou, pelo contrário, quando é que a confirmam. Uma leitura mais atenta do catálogo e uma visita menos apressada à exposição poderão adensar a reflexão sobre os pontos levantados por D.R.C.

Mariana Pinto dos Santos escreve de acordo 
com a antiga ortografia

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