Que lições retiramos da pandemia? A eficiência das vacinas e das máscaras, a importância do SNS e do teletrabalho e o que há para fazer no ensino
Digital generated image of syringe and bottle with Covid-19 vaccine standing on dark blue data surface.
Dois anos depois de a covid-19 ter surgido pela primeira vez em Portugal, o Expresso perguntou a especialistas de diversas áreas quais eram as principais lições que o país e o mundo devem retirar do combate ao vírus. Há uma conclusão global: a importância da ciência e a sua capacidade para salvar vidas tornou-se mais real
(O Expresso publica a partir de 2 de março e até dia 16 uma série de trabalhos sobre os dois anos da pandemia.)
Vacinas: a principal arma
As vacinas mataram a pandemia. “Foi a ferramenta mais importante que fomos capazes de desenvolver, e a sua importância não se cinge à covid”, diz Miguel Prudêncio, investigador no Instituto de Medicina Molecular. A investigação contra o vírus Zika, por exemplo, já está a ser feita com base na tecnologia MRNA – aplicada nas vacinas contra a covid-19 da Pfizer e da Moderna. “A panóplia de potenciais aplicações desta tecnologia é hoje muito maior. É um legado difícil de estimar.”
Luís Graça, imunologista e membro da Comissão Técnica da Vacinação da DGS, diz que os resultados das vacinas mostram a importância de tomar decisões com base “no melhor conhecimento técnico à medida que este vai evoluindo.” “Permitiram normalizar as nossas vidas de uma forma mais otimista”, garante, sem arriscar responder à pergunta: irão as vacinas contra a covid-19 fazer parte da nossa rotina para sempre?
“Daquilo que se sabe em termos de imunidade e comportamento da infeção, há uma probabilidade elevada de as vacinas continuarem a ser utilizadas de forma regular em populações específicas, como acontece com a vacina da gripe”, responde Prudêncio. O vírus vai continuar a transmitir-se, mas o especialista arrisca: reforços sazonais para a população em geral “não serão a norma”.
Máscaras: uma ferramenta essencial
E as máscaras, farão parte do novo normal? “É possível que sejam parte das nossas vidas no futuro”, responde o virologista Paulo Paixão. O perito considera que deixarão de ser necessárias se a situação ficar controlada com o reforço da vacina no próximo inverno. “Mas será um processo gradual. As pessoas que nunca tiveram muito medo não vão ter problemas em largá-las, e as que sempre tiveram muito medo, sobretudo os idosos, vão demorar mais tempo”, vaticina.
No início da pandemia, a ciência tinha dúvidas sobre se as máscaras eram de facto eficazes a combater a propagação do vírus. Aliás, antes da covid-19 já eram usadas em vários países asiáticos para diminuir a exposição a outras doenças respiratórias e à poluição. “A medida nunca teve muito êxito porque não era universal: as pessoas usavam máscaras na rua e nos transportes públicos, mas não no trabalho e em casa. Sem regras gerais era difícil ser uma estratégia bem sucedida”, explica Paixão.
Agora já sabemos mais – e essa é “uma lição que fica”. “Caso haja dúvidas significativas no futuro, seja com a covid-19 ou com outras doenças respiratórias como a gripe sazonal, ganhamos a possibilidade de voltar a utilizar as máscaras temporariamente”, sublinha o virologista.
Sistemas de saúde: reforçar e modernizar
Apesar de todas as dificuldades, o Serviço Nacional de Saúde (SNS) resistiu aos períodos mais críticos da pandemia – sendo que nenhum sistema de saúde do mundo estava preparado para ela. No entanto, para garantir uma melhor resposta no futuro, é crucial tornar a gestão de hospitais e centros de saúde mais flexível: “Os gestores e administradores precisam de mais autonomia, com a responsabilidade acrescida que daí advém”, aponta Paulo Boto, especialista em gestão de organizações e serviços de saúde na Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP).
Também docente na ENSP, Teresa Magalhães aponta a necessidade de dar melhores garantias aos novos profissionais de saúde e diz que a forma como os hospitais estão organizados está “obsoleta”. “Porque é que um doente que mora a 50 km do hospital tem de se deslocar para ir buscar a medicação? Porque é que os sistemas de telessaúde não estão incorporados nos modelos de prestação de cuidados dos hospitais e cuidados primários? Porque é que não se encontram respostas ao nível de outros agentes de saúde, como as farmácias, para prestação de serviços de proximidade”, pergunta a perita, pedindo linhas específicas dedicadas a determinadas patologias para “melhorar a comunicação entre cidadãos e prestadores”.
E há outros progressos a fazer antes da chegada aos hospitais. Atualmente, apenas 1,7% do orçamento nacional para a saúde é destinado à prevenção: somos o 6.º país da UE com a percentagem mais baixa, bem abaixo da média dos 27 (2,8%). “A médio, longo prazo precisamos de agir a montante: promovendo a saúde, prevenindo a doença, e modificando comportamentos alimentares e de exercício físico”, aponta Paulo Boto. Só assim será possível ajudar a reduzir a necessidade de cuidados de saúde mais complexos e caros.
O fenómeno do “long covid” já está a pressionar o sistema e Teresa Magalhães alerta: “A resposta a esta crise descurou outras respostas clínicas que tiveram e vão a continuar a ter impacto nos serviços de saúde”, aponta, dando o exemplo dos rastreios que ficaram por realizar e dos doentes crónicos que foram menos acompanhados nos últimos meses.
Saúde mental: mais atenção e prevenção
“Temos alguns dados que nos permitem dizer isto com uma certa legitimidade: alguma coisa mudou”, começa por dizer Francisco Miranda Rodrigues. O bastonário da Ordem dos Psicólogos refere-se à maior atenção que a sociedade portuguesa passou a dar à saúde mental durante a pandemia. A procura por psicólogos aumentou significativamente e a Ordem é cada vez mais vezes convidada para debates públicos por empresas e organizações: “O estigma em relação à saúde mental continua a existir, mas a sua dimensão mudou”, sublinha.
Rita Araújo Gameiro, psicoterapeuta e psicanalista, corrobora esta ideia: a pandemia e sobretudo os confinamentos serviram para a população ganhar consciência da importância da saúde mental. Agora é preciso agir: o Governo já garantiu que o reforço dos recursos nesta área é uma prioridade, mas continuam a existir apenas 250 psicólogos nos centros de saúde, por exemplo.
As medidas já conhecidas – como a criação de dez equipas comunitárias em todo o país – são positivas, mas Miranda Rodrigues lembra que a maioria destina-se a “apoiar pessoas que já estão doentes.” “Fica de fora a prevenção e a promoção da saúde mental. Por isso é que é muito importante distinguir entre doença mental e sofrimento psicológico – que pode tornar-se em doença se não houver intervenção”, afirma. Num país pobre, esse apoio é essencial: “A saúde psicológica não pode estar afastada do mundo do trabalho como se não tivesse impacto na economia”, diz o bastonário.
Ensino: recuperar as aprendizagens
As escolas estiveram fechadas meses a fio, ficou provado que o ensino à distância não funciona para todos e o ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, “esteve desaparecido em combate”, critica Susana Peralta, professora de Economia da Nova SBE. Durante esse período, Peralta assistiu a um “discurso muito pernicioso” na sociedade portuguesa: as escolas tinham de abrir porque os pais tinham de trabalhar, como se o encerramento do ensino fosse mau apenas para a economia.
“As pessoas não acreditam que a educação é uma das batalhas que herdamos da pandemia”, conclui Peralta – apesar de reconhecer que o tema tem tido cada vez mais espaço mediático nos últimos tempos. Esse espaço será preciso: devido ao envelhecimento da classe docente, será necessário contratar 40 mil novos professores nos próximos dez anos.
“A DGS tem mostrado um descuido muito grande em relação à educação”, critica Peralta. Apesar de ainda não haver muita evidência sobre o impacto da máscara na aprendizagem, há indicadores nesse sentido – sobretudo nas crianças que estão a “aprender as bases da comunicação”. “Faltou uma explicação clara por parte da DGS sobre o porquê de não terem sido os mais jovens os primeiros a largar a máscara”, garante o investigador Pedro Freitas, que coordenou um estudo sobre o ensino à distância. “A única coisa boa que saiu da pandemia foi a produção abundante de material didático digital , mas é preciso condições e formação para que este seja aplicado”, lembra.
O investimento em educação só se paga a médio, longo prazo: enquanto que a formação de adultos traz retornos imediatos, a aquisição de competências dos mais jovens “só tem efeitos no mercado de trabalho dali a 20, 30 anos”, diz Peralta, que fez parte de um grupo de trabalho criado pelo Governo em março do ano passado, para combater os efeitos da pandemia na aprendizagem dos alunos.
O resultado final foi conhecido em junho do ano passado: o “Plano 21|23 Escola+” repescou muitas medidas antigas e reforçou a autonomia das escolas, mas os diretores dizem agora que os planos de recuperação quase não saíram do papel – muito por causa dos isolamentos constantes nas turmas devido à covid-19. “A autonomia é uma componente importante do plano de recuperação”, continua a economista, mas o trabalho do Governo foi insuficiente: “Podiam ter apontado mais indicadores, quantificar ideias e estabelecer objetivos. A autonomia nunca é uma boa desculpa para não se porem números num problema”, finaliza.
Teletrabalho: flexibilidade veio para ficar
Os confinamentos impostos pela covid-19 generalizaram o conceito de trabalhar em casa – e essa flexibilidade laboral já não volta atrás no mundo ocidental. “O teletrabalho está aqui para ficar e talvez aumente a produtividade se for implementado de forma apropriada”, concluiu este mês um grupo de investigadores em que se incluem vários economistas da OCDE, num artigo a nível europeu publicado no Centre for Economic Policy Research.
Este estudo mostra que os patrões gostam do teletrabalho porque os seus funcionários trabalham mais e de forma mais produtiva, enquanto que os trabalhadores apontam como principal vantagem a diminuição de despesas nas viagens diárias para o local de trabalho – e também o facto de ficarem com mais tempo livre. Há desvantagens conhecidas: tornou-se mais difícil separar a vida pessoal e profissional nos últimos dois anos, sendo que Portugal foi rápido a legislar sobre o tema.
“O teletrabalho veio para ficar, sim, mas não será totalmente generalizado: vai sempre depender dos grupos etários e do estado profissional e social de cada trabalhador”, aponta Natália Monteiro, especialista em Economia do Trabalho e investigadora na Universidade do Minho. Dados recentes vindos dos Estados Unidos mostram que a economia está a caminhar para um regime híbrido, em que os trabalhadores podem decidir onde preferem exercer as suas funções em determinado momento. Ainda não há muitos dados que indiquem como irá reagir a economia nacional agora que a pandemia está no fim, mas Natália Monteiro acredita que Portugal “também vai seguir um tendência mais flexível e um caminho para um regime híbrido.”
Continuar a confiar na ciência (e melhorar a comunicação)
Anabela Carvalho, especialista em comunicação e docente na Universidade do Minho, faz um “balanço globalmente positivo” do trabalho levado a cabo pelas autoridades públicas durante a pandemia. No entanto, aponta algumas “deficiências”: a pouca disponibilização pública de dados sobre a pandemia por parte do Governo, a decisão inicial de esconder o parecer da vacinação infantil e as “inconsistências” reveladas em algumas das medidas restritivas. “Alguma instabilidade nas recomendações é natural dada a natureza evolutiva da pandemia, mas é fundamental que isso seja explicado de forma clara e que haja justeza nas decisões”, recomenda.
Apesar de tudo, ficou provado que o conhecimento é, capaz de salvar vidas: a importância da ciência para as sociedades atuais tornou-se mais ‘real’ e ‘tangível’, e “há vários estudos que apontam para um aumento da valorização da ciência e dos cientistas por parte dos cidadãos na sequência da pandemia”, continua Anabela Carvalho.
Para estes ganhos se tornarem permanentes, é necessário apostar em força na literacia científica e em saúde dos cidadãos – um ponto que também é sublinhado por Rui Gaspar, especialista em comunicação, que não esquece o papel central dos agentes governativos: porque, no futuro, a comunicação política tem de estar mais focada na recuperação do que na resiliência dos cidadãos. “Isto vai permitir-lhes enfrentar melhor situações futuras e encará-las mais como desafios do que como ameaças”, finaliza.