Manhã de sexta-feira do primeiro dia das novas medidas de confinamento. Estamos à porta de uma barbearia de bairro nos arredores de Lisboa. Como seria de esperar pelas novas regras, a tabuleta indica que quem tem barbas ou cabelos para cortar ou aparar tem de esperar pelo menos um mês. Ou dois. “Sorry we´re closed!”. A montra está forrada a plástico preto, para não deixar dúvidas.
Batemos à porta, porque fomos avisados que o espaço estava a furar o confinamento. O barbeiro Fernando, de 38 anos, de máscara preta no rosto, espreita por uma portinhola improvisada - como se estivéssemos à entrada de um quartel ou discoteca - para se certificar que não é a polícia ou um fiscal. Convida-nos a entrar. Lá dentro, avistamos um cliente com a nuca já desbastada. Mais uns toques finais e está pronto. É o quinto cliente da manhã. O último a ser atendido foi um padre que abençoou esta prática ilegal. “Ele ligou-me a perguntar-me se o atendia. E eu respondi-lhe: “Cortar-lhe o cabelo senhor padre? É proibido, mas se o senhor padre alinhar eu corto-lhe, é na boa. E assim foi.” #Deus no comando e muita fé na navalha.
Fernando bebe uma cerveja mini, enquanto nos explica que no confinamento de março do ano passado cumpriu as regras sem pestanejar. “Fui um convicto adepto desse primeiro confinamento. Fechei o meu espaço, não cortei o cabelo a ninguém e fui para casa. Mas agora isso já não pega. Uns trabalham e outros não? Digam-me o caso de uma barbearia onde tenha havido um surto de Covid. Não existiu. Porque são espaços seguros. Eu trabalho sempre de máscara, esteja a cortar o cabelo a amigos ou desconhecidos. Aqui todas as pessoas desinfectam as mãos com o álcool gel e eu garanto o devido distanciamento entre clientes. O governo quis dar-me umas férias não remuneradas, mas não vou nisso.” E ainda acrescenta: “As medidas deviam proteger os idosos e os grupos de risco, mas malta saudável como eu ou vocês não devia ter de se sujeitar a estas regras todas.”
O profissional conta-nos que tem muitas despesas fixas e que não pode dar-se ao luxo de parar, para não ir ao fundo. Só pela barbearia paga 700€ de renda, outros tantos vão para a morada onde mora, e ainda tem de garantir o aluguer e despesas do filho mais velho que está a estudar numa universidade fora de Lisboa. “É muito dinheiro. E sem ganhar não dá. Tenho algum de parte guardado, mas não quero gastá-lo e ficar sem nada. E se da última vez não concorri aos apoios, porque não gosto dessas merdas e achei que não precisava, desta vez vou querer o que tenho direito até ao último cêntimo.”
O que é certo é que o futuro está incerto para este setor. Consciente disso, a sua filha, de 15 anos, quando o acordou esta manhã antes de ir para a escola chegou a dizer-lhe que não se importava de ir trabalhar para as limpezas se fosse preciso ajudar a família. “Até as lágrimas me vieram aos olhos.”, recorda.
Apesar de não parar, Fernando reduziu o horário e agora atende apenas na parte da manhã, para não chamar a atenção. “Se puder ganhar pelo menos 50 euros por dia é óptimo. Claro que a minha média por dia era o triplo do valor. Mas assim dá para me aguentar. Curiosamente, hoje na fila do peixe, uma senhora abordou-me e marcou para amanhã de manhã cortes de cabelo para a família. Está-se bem.”
E se a coisa der para o torto? Se a polícia ou inspecção lhe bater num destes dias à porta da sua barbearia? A resposta chega pronta. “Não abro, eles não entram e eu piro-me pelo quintal das traseiras e peço ao vizinho para me deixar sair pela casa dele. Eu trabalho aqui há 20 anos, a esquadra da polícia está aqui há bem menos.” #Minha barbearia, minhas regras.
Também a sua mulher, que trabalha no ramo da estética, vai passar a deslocar-se a casa das suas clientes para fazer unhas de gel, colocar pestanas postiças e outros serviços de embelezamento, agora feitos pela calada, à porta fechada.
É o lado clandestino da cidade a mexer. E de que maneira. Fernando foi convidado para assistir ao jogo Benfica-Porto numa associação recreativa que vai ter uma multidão de adeptos. “Mas aí não vou.”
Já na rua, damo-nos conta que há um sapateiro a funcionar com a porta entreaberta. E já que é uma da tarde, Fernando convida-nos para almoçar com ele num restaurante ali perto. Aceitamos. Logo à entrada, o estabelecimento tem uma mesa a barrar a entrada dos clientes. Serviço só para “take away”. Assim ditam as novas regras. Mas Fernando é amigo e cliente habitual e entramos ‘pela porta do cavalo’. Na sala do fundo estão outros dois sujeitos amigos a almoçar. Chega à mesa arroz de polvo e gambas. Um pitéu de primeira. A merecer um picante caseiro que leva whisky, malagueta ‘das boas’ e outros segredos do cozinheiro. Todos os empregados e cozinheiros estão de máscara, mas o dono não esconde estar contra estas novas medidas. “São péssimas. Se vamos confinar, confinemos todos. Parece que os da restauração é que são os criminosos desta história. Não há lógica. Isto não é confinamento, é brincar com quem trabalha e precisa disto para viver. E ainda vamos ver como e quando vêm as ajudas e se serão mesmo a 100% como prometeram. Porque voltámos todos à estaca zero. E quem não tem um balão de oxigénio vai à vida e fechará certamente as portas de vez...”
Na baixa de Lisboa, esta sexta-feira parece um sábado comum. Vemos mais pessoas nas ruas do que num feriado. E incomparavelmente mais movimentação do que no confinamento de março passado em que esta zona da cidade era um deserto de gente.
À porta do restaurante e café “O Lírio”, no Largo de São Domingos, os empregados lavam a fachada. O gerente Marco Castro serve alguns cafés. Perdeu a maioria da clientela que vinha do Teatro Nacional D. Maria, das lojas das redondezas, da associação de bancários. "Estávamos a faturar 15% do habitual e agora contamos passar a 5% que é o que aconteceu no último grande confinamento.” Marco, que vive na margem sul, desabafa que ficou incrédulo quando se meteu esta manhã na estrada e viu uma imensidão de carros. “O trânsito circulava como se não estivéssemos em confinamento. É um confinamento de brincadeira. Mas o que é isto? Uns confinam e outros não, porquê?“.
Abordamos pouco depois a arquiteta paisagista, Susana Rodrigues, de 44 anos, a cruzar a Rua Augusta num passo apressado. Numa das mãos um copo grande de café que acabara de comprar em ‘take away’. Decidiu ir bebê-lo junto ao Cais das Colunas, para olhar o Tejo, desanuviar a mente e apanhar sol. “Mandaram-nos ficar em casa, mas é contra natura ficarmos tanto tempo fechados. Ainda mais no Inverno em que o frio se sente tanto nas nossas moradas. E sou da opinião que para mantermos alguma saúde mental não podemos ouvir e fazer tudo o que nos mandam como se fossemos robôs. E se na primeira vez que nos mandaram a todos para casa, as pessoas cumpriram, agora não será assim. É mais um mês disto, não é? Estou em estado de choque. O país não aguenta.”