1991: peixes, mariscos e famosos na Quinta do Lago, o reino de Gigi
Bernardo Reino mostra a banca de peixes e mariscos
Chama-se Bernardo Reino, mas todos o conhecem por Gigi. A si e ao mais famoso restaurante de praia do Algarve. Porto seguro para amantes de peixes e mariscos de qualidade, na Praia da Quinta do Lago, distingue-se também pela atmosfera, alimentada pelo carisma do anfitrião. De Mário Soares aos Pink Floyd, Mark Knopfler e às vedetas do futebol, todos conheceram o Gigi. Em 1991, foi na mesa 8 deste restaurante que se fechou a compra da nova casa de Ayrton Senna, tricampeão mundial de Fórmula 1. Todas as semanas, para comemorar os 50 anos do Expresso, vamos viajar no tempo - com o apoio do Recheio - para relembrar 50 restaurantes que marcaram as últimas décadas em Portugal
Quem o conhecia, garante que Ayrton Senna “gostava muito” de Portugal. Foi no Estoril que conquistou, inclusivamente, o primeiro Grande Prémio de Fórmula 1 da sua carreira. Costumava ficar em casa de António Carlos de Almeida Braga, em Sintra, e procurava um sítio para morar. Conhecido como “Braguinha”, o banqueiro sugeriu-lhe a Quinta do Lago, no Algarve. Além de usufruir do sol e de privacidade, teria o aeroporto de Faro a curta distância, para levantar voo quando precisasse. Para não inflacionar o preço de venda da casa, quem mediou a transação junto do proprietário inglês foi Braguinha e os pais do piloto, que foi tricampeão do mundo de Fórmula 1 (venceu em 1988, 1990 e 1991). O negócio fechou-se em 1991, na mesa 8 do restaurante Gigi, na Praia da Quinta do Lago, em Almancil.
Senna recebeu a casa “antes do Grande Prémio do Brasil”, revela Bernardo Reino, conhecido como “Gigi”, o carismático timoneiro do restaurante algarvio batizado com a sua alcunha. Gigi também era grande amigo do banqueiro Braguinha, um “defensor do desporto” do Brasil. Ayrton chegou a conhecer o inglês que lhe vendeu a casa e que quis saber o que ele fazia na vida. “Sou piloto”, respondeu Ayrton. O vendedor referiu ter sido piloto da Royal Air Force e interrogou-se sobre o tipo de aviões que Senna pilotava, mas este esclareceu que era um racing driver, e que gostava muito da casa. Ouve então o inglês sugerir-lhe que peça ao amigo Braguinha para lá ir passar uns dias. “A casa é minha!”, clarifica o brasileiro. “É para um piloto? Pensei que era para um banqueiro. Se soubesse que era para um piloto tinha feito um desconto de 10%”, responde o inglês, deixando Senna surpreendido. Terá sido um momento de humor britânico?
Ayrton Senna viveu na Quinta do Lago com a namorada Adriane Galisteu. Era “muito caseiro”, tranquilo e “super descontraído”, descreve Gigi, que lhe deu boleia no areal, conduzindo um Land Rover. Ayrton perguntou-lhe por que não punha as mãos na posição “10 para as 2”, sobre o volante. “Eu ia a 20 à hora na areia, mas ele disse que, seja 20 ou a 200, é sempre para pôr as mãos na posição correta”, conta Gigi. Num aniversário, incita Ayrton a tirar fotos com uma garrafa de champanhe na mão: “É a primeira vez que tiras uma foto com uma garrafa de champanhe na mão sem ganhares um Grande Prémio”, brincava. Por vezes, Ayrton passava no Gigi, sobretudo ao final da tarde. Gostava de peixe grelhado, camarão e lulas, e era reservado: “Uma vez, sentiu-se incomodado num restaurante. Veio o bife pedido, mas os pais mandaram umas 40 criancinhas pedir-lhe autógrafos. Deu os autógrafos, mas não comeu o bife, foi-se embora”. Gigi sugeriu-lhe outros restaurante onde “não o iam atrapalhar”, como o São Gabriel, de um suíço-alemão “pro-Schumacher”. Senna frequentou-o e, de facto, lá “ninguém o chateava”. Apreciava também os pratos caseiros da sua cozinheira baiana: o feijão, o arroz, filetes ou o adorado bolo de chocolate. A 1 de maio de 1994, Ayrton Senna morreu em Itália, num fatídico acidente no Grande Prémio de San Marino, em Ímola. Quando Gigi entrou na sua casa, reparou no fax. “Estava a receber tanta coisa que tinha esgotado o rolo, havia uma data de rolinhos no chão. Devia ser o mundo inteiro a mandar-lhe coisas...”, recorda.
Esplanada do Gigi
Adeus seguros, olá restauração Atravessar a ponte em direção ao restaurante Gigi e à praia, pode implicar algumas paragens. Observam-se os passadiços e as aves, o estreito da Ria Formosa e o sistema dunar. Os aviões sobrevoam os céus e aproxima-se a casa em madeira do mítico restaurante. O nome, “Gigi”, é a alcunha de Bernardo Reino e terá surgido na juventude, num verão dos anos 60 bem regado a gins. Hoje, Gigi só bebe vinho, mas é um anfitrião de categoria, que logo acomoda e aconchega as visitas... “Traz aí um misto de ameijoas à Bulhão Pato e de mexilhão à Provençal, para ele provar os molhos todos. Gosta? E um pouquinho de salada. Agora dê ao dente!”.
Damos ao dente e recuamos ao momento em que André Jordan idealizou o resort da Quinta do Lago – celebra 50 anos em 2022 -, sentado na colina onde agora se eleva o restaurante Casa Velha. Além da restauração, o projeto incluiu imobiliário e alojamentos, campos de golfe e outras valências. A estrutura de madeira à beira-mar foi desenvolvida “por causa de umas festas que houve na Quinta do Lago”, explica Bernardo Reino, que entrou lá pela primeira vez como cliente. Estavam chilenos a gerir e “a única coisa que sabiam fazer era ceviches, mas ninguém comia”. “Eu chegava aqui e, às vezes, vendiam-me quatro doses de ceviche pelo preço de uma porque não conseguiam vender, ninguém queria”. Ainda assim, Gigi ficou “com a pulga atrás da orelha”, rendido ao espaço. Nas imediações “não havia nada”.
Em 1985, Manecas Moceleck assumiu a gestão do então Beach Pavilion. Durante um ano, contou com a colaboração de Bernardo Reino, que vivia em Sintra e tinha uma “longa e promissora carreira nos seguros”, uma corretora e loja de vinhos. Todavia, Manecas “estava doente e não gostava do dia”, mas sim da noite. “Uma vez foi à praia e tirou os óculos. Quase cegou com uma palha do guarda sol...”. No ano seguinte, Manecas desafia Gigi a ficar com o pavilhão da praia e o amigo resolve “dar a volta ao texto”. Fala com André Jordan e garante-lhe total empenho: “Pode ter a certeza que vou trabalhar 24 horas por dia, sete dias da semana. Tanto que ainda hoje em dia este restaurante não fecha”, sublinha. Bernardo vendeu tudo, olhou em frente e assumiu a gestão do restaurante Gigi.
Gigi assistiu à entrada de Portugal da CEE. Não se esquece quando, durante uma reportagem de uma equipa alemã, o governador civil Cabrita Neto “arregaçou as calças e ficou nesta praia, de fato e gravata, com água pela barriga das pernas, a segurar a bandeira europeia”. Havia um entusiasmo geral por Portugal entrar numa Europa “diferente, otimista, feliz, com pessoas com as reformas garantidas e tudo isso”. “Eram tempos em que as pessoas acreditavam que era para melhor. Estava para vir um novo mundo, uma nova Europa”, concorda a esposa, Leonor Reino. Na praia, mesmo em agosto, “só havia dez toldos”, enquanto hoje são filas de carros e as pessoas se concentram “umas em cima das outras”, apesar da extensão do areal. A região “é um paraíso, às vezes mal aproveitado, porque as pessoas só vêm em agosto, que é quando o Algarve serve pior, por estar permanentemente em rutura, e cada vez pior”. Muitos clientes foram chegando vindos do golfe da Quinta do Lago e também iam crescendo os residentes. Por seu turno, Volker Hubber “turbinava muito o Algarve na parte cultural” e enchia de artistas o Centro Cultural de São Lourenço, onde Bernardo Reino conheceu Gunter Grass. Muitos vinham almoçar ao Gigi e saíam a dizer que tinham comido “o melhor peixe do mundo”. No primeiro ano, o restaurante abriu de maio a setembro. Depois começou a prolongar porque a demanda aumentava.
Peixes frescos são boa opção
Os rituais e a gastronomia Foi sempre Gigi a controlar a cozinha, sem inventar. “Só tentei requintar, a nossa cozinha estava inventada. Só era preciso desaparecerem o prato da sopa muito cheio e aquelas travessas de cozido onde não se vê o companheiro da frente, ou seja, dar um ar mais elegante à apresentação. Continuo com a minha loiça de Porches pintada à mão e as minhas coisas portuguesas, mas mudar pratos conforme a moda, servir pratos quadrados ou empinados, não pratico isso. Tento valorizar a parte mais autêntica e o melhor de Portugal, com mais apresentação do que o tradicional enfarta-brutos”, explica. A conversa prossegue e a banca enche-se de peixes e marisco frescos. Reparamos nos quadros, lemes, remos, peixes em madeira nas paredes e pendurados no teto e na beleza do Parque Natural da Ria Formosa agraciando o restaurante. “Faz um carabineiro também, que é o ícone da casa, e o peixe a seguir, ele come tudo”, decide Gigi, de uma assentada. E ainda bem…
Quando abriu este santuário gastronómico, Gigi já era um apaixonado pela comida e os preparos caseiros. Soube sempre o que queria... “Quanto mais viajei, mais defensor da cozinha portuguesa fiquei. Tenho uma clientela de 90% estrangeiros, ou mais, e eles são um bocadinho avessos a modas. Gostam de Portugal pela nossa essência: os tomates, as batatas... Sou amigo de vários cozinheiros que fazem carreira preocupados com os Michelin, quando os Michelin, hoje em dia, lá fora, não têm muito significado e alguns estão vazios, outros entregaram as estrelas. Mas respeita-se tudo, há espaço para todos. Já viajei, trabalhei e fiz férias em muito sítio do mundo, mas Portugal é uma terra fascinante porque em 600 Kms encontra várias cozinhas diferentes, vários cozidos à portuguesa diferentes, várias feijoadas”, salienta o anfitrião. Gigi trouxe frapés para a praia, máquinas de gelo e uma sangria de champanhe, a Gigi Bola, hoje “imitadíssima em tudo o que é lado”. Bernardo Reino ia ao Mercado de Quarteira, que à época seria o “melhor mercado do mundo”, e à praça de Quarteira, onde os pequenos produtores da serra traziam produtos como a batata doce, o tomate, orégãos e salsa. Ainda mantém os rituais, como atesta Leonor: “Ele sai de casa cedíssimo, escolhe o peixe, os legumes e tudo, tudo. Tem uma capacidade que não é comum. Todos os dias vai à praça, todos os dias, e aí compra as coisas necessárias”. “É uma espécie de ginástica”, ilustra Gigi.
A esposa refere que um colaborador traz os legumes frescos, mas que aqui “o essencial” é o peixe e o marisco. “Só trabalhamos com perecíveis, não com outro tipo de matéria, e isso dá uma perspetiva e frescura. Hoje em dia, todos falam imenso das distâncias e do que encarece o produto e não se vê bem o lugar onde estamos inseridos. O Gigi tem imenso cuidado em ir escolher e isso é o que dá valor. Quando me dizem que isto é uma maravilha, respondo que o segredo é só um: fresco, fresco, fresco, fresco e feito ao momento, ao momento, ao momento. A simplicidade é a melhor coisa que existe. Depois usamos os alhos, as cebolas...”. Neste restaurante trabalha uma equipa, “mas existe um timoneiro e também anfitrião, com a sua capacidade de receber”. “O Gigi tem uma personalidade muito especial, muito forte, e uma capacidade de se exprimir, falar e atuar. É uma maneira de as pessoas perceberem que há uma voz a falar no meio de nós, isso é muito importante”, realça Leonor. “Tento fazer disto um relógio e eu estou cá para dar a corda ao relógio. Faz muita diferença estar cá”, esclarece Bernardo Reino. No Gigi, apostou-se desde o início na frescura dos peixes, como o pregado, o robalo (€79/Kg), o linguado e o salmonete. Mas também no camarão listado e depois no carabineiro (€176/Kg), que “virou moda” e “ficou rei por causa do molho”. Destaque ainda para a santola (€85/Kg), lavagante e lagosta (€138/Kg), a salada de peixe (€25) e de fígado/ovas (€18), as amêijoas (€30), o caril e o camarão à guilho com arroz (€30).
Neste restaurante fala-se português, lembra Gigi
Soares “gostava mesmo de dar ao dente” A atmosfera é crucial nesta casa. Enquanto o vozeirão de Pavarotti conquista os clientes, empenhados em garfadas convictas e entregues aos vínicos prazeres de Baco, Gigi lembra que as pessoas deviam vir sem condicionantes. Em agosto “vêm com muita pressa, não para irem embora ou para irem à praia”, mas com “pressa para estarem ao lado dos famosos, acham eles (risos)”. Sendo mais ou menos procuradas, o que é facto é que esta casa se transformou num viveiro de figuras conhecidas. Vinham “banqueiros do passado, do presente e futuros banqueiros”, médicos, como o professor Machado Macedo, e políticos, claro. Marcelo Rebelo de Sousa aparece às vezes e Mário Soares era cliente habitual. “Ele tinha uma amizade grande por clientes aqui que eram irmãos do Mitterrand. Gostava dele por várias razões, primeiro porque defendia a liberdade como ninguém. Era também um garfo fantástico, gostava mesmo de dar ao dente. Nunca veio com comitivas e nem com seguranças. Acho que insistiam mas ele não os trazia. Um detalhe extraordinário é que não pedia pratos caríssimos. Uma vez, à noite, fizemos uma mariscada grelhada a pedido dos anfitriões, mas ele comia muito simples, pratos como sopas ou amêijoas, não era de cozinhas muito elaboradas. Encontrava-o muito no velho Pap'Açorda”, recorda Bernardo Reino.
Após um concerto em Lisboa, os Pink Floyd passaram neste restaurante, como “convidados da Volkswagen”. Curiosamente, eram “colecionadores de carros antigos, ótimos”. Leonor adorou ouvir o que disse Mark Knopfler, dos Dire Straits, na última visita: “Trinta anos e continua tudo na mesma... É tão bom, tão bom, tão bom... Eu já estou velho, mas isto é uma coisa extraordinária, está tudo igual, parece que voltei atrás no tempo”. Gigi recorda-se de George Michael comer peixe e de o ver dançar “com um brinco com crucifixo” no Pátio, ao lado da Casa Velha. Do futebol vêm “muitos ingleses, principalmente”, alguns residentes da Quinta do Lago, e mesmo donos de clubes. David Beckham apareceu “porque no Algarve esteve George Best, que escreveu um livro onde citava vários jantares, aqui, ao pôr do sol, com as glórias do Manchester United e Liverpool, e com os miúdos novos convidados pelo Beckham”. A visita de Roman Polanski teve um laivo inusitado. Chegou “chateadíssimo com... as abelhas”, mas compensou com umas boas ostras, amêijoas e carabineiros. Para a história fica também o dia em que Gigi serviu em sua casa o Príncipe de Hanôver, que se fez acompanhar de Carolina do Mónaco. “Além do Mónaco, ela tem uma quinta nas montanhas onde produz azeite. É de uma simpatia e simplicidade... nada do que aparece nas revistas”, comenta Gigi. Nesse jantar comeram lulas cheias à algarvia, e dourada ao sal.
Um brinde ao Gigi
Evoluir na continuidade
Um vigoroso “O soole miooo” contagia a sala do 'novo' Gigi, que abriu em maio deste ano, depois de o espaço antigo ser demolido. Reergueu-se cerca de 30 metros a norte, saindo da duna primária da praia, mas mantendo estrutura similar e as vistas sobre a ria. Bernardo Reino satisfez-se com o resultado, que foi ao encontro do que exigia o bilionário irlandês Denis O’Brien. O atual proprietário da Quinta do Lago não queria ter “um choque, mas que estivesse exatamente igual” quando reentrasse no Gigi. “Numa altura em que Portugal está entregue a modas de seis em seis meses, faço minhas as palavras de Oscar Wilde: A moda é uma variação tão intolerável do horror que tem de ser mudada de seis em seis meses (risos)”, comenta Gigi.
Como o Boa Cama Boa Mesa noticiou em maio, as novidades foram um bar relaxante de apoio, uma casa de banho para pessoas com mobilidade reduzida, balneários de apoio à praia, painéis solares para aquecimento de água, aumento da capacidade de esplanada, cozinha aumentada e melhorada, instalações de apoio ao nadador-salvador e um posto de Primeiros Socorros. As colunas ficaram mais grossas, mas quem entra percebe que em geral “está igual” ao que era. Há clientes de sempre a parabenizar pela intervenção no restaurante Gigi (Praia da Quinta do Lago, Quinta do Lago. Tel. 289394481), distinguido como “Mesa com Mérito” na edição de 2020 do guia Boa Cama Boa Mesa. Algum do staff está na casa há mais de três décadas e isso demonstra a importância do trabalho em equipa. O timoneiro deste local emblemático gosta de “sentir isto como se fosse uma família, uma tribo em que as pessoas se sintam bem”.
1991: “PASSÁMOS PARA O RECHEIO E NUNCA MUDÁMOS”
Com a aquisição, em 1990, de uma loja de cash & carry muito bem posicionada em Portugal, o Arminho, em Braga, foram vários os benefícios sentidos no grupo Jerónimo Martins, que acelera o seu crescimento nos anos seguintes. Domingos Pereira e Teresinha de Jesus Carneiro são os proprietários do restaurante Espaço 12, em Braga. O negócio começou há 44 anos, no local onde ainda hoje funciona, como snack-bar, e, tal como António Sousa – começou no Arminho e hoje gere a loja Recheio do Porto -, os responsáveis do Espaço 12 também ficaram satisfeitos com a aquisição do Arminho. “Começámos com o Arminho, passámos para o Recheio e nunca mudámos”, diz Domingos Pereira, exemplificando que a companhia “sabe crescer de acordo com as necessidades dos clientes”.
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