Chef David Jesus abre o Mapa: “A cozinha portuguesa não pode ficar limitada à gastronomia local”
Chef David Jesus
Foto: Luis Ferraz
Depois de 12 anos a trabalhar lado a lado com José Avillez, David Jesus abraça o desafio de dirigir a cozinha do restaurante Mapa, instalado no resort L’And Vineyards, em Montemor-o-Novo. Com a missão de conferir cosmopolitismo à cozinha de base regional, em entrevista o chef promete voltar a colocar o Alentejo no mapa internacional da gastronomia
Rumo ao L’AND Vineyards, em Montemor-o-Novo, no Alentejo, é a primeira vez que David Jesus assume a função de chef fora de Lisboa. A missão é evidenciar as influências culinárias trazidas pelos portugueses das rotas além-mar e explorar novos rumos na renovada cozinha com o apoio do gastrónomo Virgílio Nogueiro Gomes. O resultado traduz-se em “Caminhos” que cruzam ingredientes e receitas de África, Ásia, Índia e Japão, com produtos essencialmente locais e regionais, sem esquecer a costa alentejana. É também o título do menu de degustação do Mapa, restaurante de fine dining do resort.
Restaurante Mapa
Foto: Luis Ferraz
Depois de 15 anos com o chef José Avillez, 12 dos quais como chef executivo, como foi passar um ano e meio dedicado em exclusivo ao seu projeto familiar, a padaria artesanal Millstone Sourdough? David Jesus: Foi um ano e meio com a minha mulher, a Sandra, que, entretanto, ficou grávida. No final da gravidez, passei mais tempo com o projeto, para a Sandra poder descansar. Está de regresso [à Millstone Sourdough] desde que assumi este projeto do L’AND, que foi uma decisão familiar, porque a cozinha faz-me falta. O projeto da padaria é muito interessante, nasceu de uma forma muito bonita e tem tido o seu sucesso, mas a verdade é que sou cozinheiro há 26 anos, ou seja, desde os 19. Preciso de me sentir feliz, de me sentir bem, e a cozinha dá-me esse alento.
Que razões o levaram a aceitar o desafio de assumir a função de chef no L’AND Vineyards, trocando Lisboa por Montemor-o-Novo? É a primeira vez que trabalho fora de Lisboa. Fica relativamente perto, a cerca de uma hora de viagem. Cozinhei cá na Rota das Estrelas, em 2017, e fiquei muito impressionado com o local. Acho que é um sítio muito bonito. Aquilo que me apresentaram, a ideia que queriam para o projeto gastronómico encaixou num momento da minha vida e acho que vai puxar por mim. O desafio de formar uma equipa, em que muitos elementos estão cá há muitos anos, mas também diversos novos que têm um enorme potencial, o carinho que senti quando cá cheguei, o histórico do restaurante, pelo chef Miguel Laffan, pelo trabalho que aqui foi feito. Senti entusiasmo e vontade dos proprietários de renovarem o conceito gastronómico. Sinto uma energia enorme quando cá estou. Aquela loucura de Lisboa foi-se embora, o que acho ótimo! Mas se estivesse a trabalhar em Lisboa a loucura seria igual.
Chef David Jesus
Foto: Luis Ferraz
“Vamos construir tudo com calma”
A vinda para o Alentejo aconteceu por mero acaso? Foi uma conjetura global. Tinha uma equipa de 37 pessoas no Belcanto, algumas delas estavam comigo há oito, nove anos e outras há 15, desde o tempo do Tavares. A verdade é que me dividia entre o Belcanto e a padaria, sempre com a concordância do chef e dos meus sub-chefs, mas não era assim tão justo para eles, que tomavam conta da cozinha durante o dia, eu ia aos serviços. Algum dia teria de tomar uma decisão. Acho que foi o melhor que aconteceu para mim e creio que também foi ótimo para a equipa do Belcanto, porque lhes dá oportunidade de crescer. Passei um ano e meio ótimo na padaria. Cheguei a trabalhar mais na padaria em horas e em ritmo de trabalho do que no Belcanto, porque entrava às cinco da manhã e saía às seis da tarde. Houve muitos dias durante aquele ano e meio em que trabalhei 14, 15 horas por dia, para tentar fazer o possível para a padaria crescer. Hoje em dia, tem uma estrutura mais estável, com nove pessoas a trabalhar. Quando queremos muito uma coisa, temos de lutar por ela e o cansaço chega só ao fim do dia. Não há cansaço enquanto estamos a trabalhar. Pela primeira vez, estava a trabalhar num projeto meu e da Sandra e queria que vingasse tão bem como com os outros projetos com os quais trabalhei.
Aficionado e jogador de futebol nos tempos livres, qual foi a tática inicial delineada no sentido de organizar o espaço, o trabalho em campo e a equipa? É um processo que leva o seu tempo. Sinto que tenho uma equipa de pessoas motivadas e entusiasmadas com as novidades, a nível gastronómico e de organização. Obviamente que as pessoas não perdem hábitos de trabalho de um dia para o outro. Vamos construir tudo com calma.
Estar familiarizado com os sabores goeses desde a infância facilitou a implementação deste encontro de culturas à mesa, resultante das viagens dos portugueses além-fronteiras? O meu pai é de Damão, uma das três cidades portuguesas [da Índia]. Também viveu muito tempo em Goa, nos Salesianos. Eu vivi numa casa, com uma mãe de Sintra e um pai que tinha toda a parte gastronómica e cultural da cozinha indiana. O meu pai cozinhava muito bem e a minha mãe também, e eu ia tendo a sorte de ter aquelas misturas, que, hoje, poderiam ser, muito bem, um “Caril de pato” ou um “Bacalhau com natas”…
Foto: Luis Ferraz
Essa experiência vem dar resposta à gastronomia resultante da viagem dos portugueses além-fronteiras, que se quer implementar no L’AND Vineyards. Sim e dá-me algum conforto. Se bem que nos últimos anos se fazia um trabalho muito à base disso. A cozinha portuguesa não pode ficar limitada à gastronomia local. Fomos dos povos que mais viajámos, mais influenciámos e deixámos-nos influenciar, e essas influências foram trazidas para cá. Poder trabalhá-las num patamar como se quer fazer aqui no L’AND [Vineyards] é algo que me provoca uma vontade muito grande, que me desafia, mas também tenho uma zona de conforto, porque estou dentro dos aromas e dos sabores das especiarias que queremos.
Como se constrói esta viagem de sabores com influências ora africanas, ora asiáticas, no restaurante Mapa? É preciso fazer um trabalho de pesquisa muito grande e nisso temos a sorte de contar com a ajuda do mestre Virgílio [Nogueiro] Gomes, que é talvez o maior historiador e conhecedor da cozinha antiga e das viagens, das influências que levámos e trouxemos. Dá-nos um apoio muito grande, tanto na parte da segurança em relação ao que estamos a fazer, como da credibilidade, porque possui registos antiquíssimos sobre como as coisas eram feitas, dos produtos que chegavam e que fomos trazendo para a nossa gastronomia. Contar com a ajuda do Virgílio é ótimo. É um incentivo também.
Como tem sido feita esta partilha de conhecimento e experiências com Virgílio Nogueiro Gomes? O Virgílio fez um trabalho, na minha chegada, porque também já trabalhava numa listagem de produtos, de pratos que são obviamente de inspiração portuguesa de vários países, os produtos que trouxemos, os produtos que levámos, as técnicas culinárias que fomos desenvolvendo. Reunimos algumas vezes. São sempre aulas de uma aprendizagem gigante!
Chef David Jesus
Foto: Luis Ferraz
Vai manter a ementa do Café da Viagem ou há alterações a pôr em prática? Tem de conseguir ser atrativo para as pessoas que acham que o L’AND é um sítio caríssimo. Para isso há o restaurante gastronómico. [No Café das Viagens] pode-se comer umas bochechas, um bacalhau à Brás, um arroz de polvo. Já que se chama Café das Viagens, pode haver ali viagens para muitos destinos. Não tem de ser completamente asiático. O Alentejo e a gastronomia alentejana são tão ricos, por isso, tem de haver aqui algo com um toque regional e português, porque, para um americano, comer um “Bacalhau à Brás” ou um “Arroz de polvo” é uma viagem. O Café das Viagens tem de apanhar um bocadinho de tudo, da América do Sul, de África, da Ásia. Há pratos que vão sair e outros que se vão manter.
Há quem defenda que o produto de qualidade não precisa de truques na cozinha, mas outros advogam a necessidade da criatividade. Com isso, pode cair-se no erro de desvirtuar a matéria-prima. Qual o ponto de equilíbrio entre estes dois fatores? É um sentimento muito pessoal. Cada chef sente a cozinha à sua maneira, por isso é que é tão bom visitar cada chef e ver a sua interpretação. Os produtos que temos, não precisando de magia nem de truques, precisam de ser respeitados ao máximo. Encontrar a melhor forma de os cozinhar, de poder oferecer o melhor que têm a nível de sabor, de textura, é sempre um caminho que converge com a criatividade. Para mim, o essencial é manter o produto como ponto de referência, o sabor do produto e tal qual como é. Podemos tentar muitos testes e fazer cruzamentos com sabores e produtos, mas a decisão passa sempre por preservar e elogiar o produto ao máximo.
Atum dos Açores, miso, tempura, algas
Foto: Luis Ferraz
Que papel tem origem e a produção do produto, bem como a relação com os produtores? E que pontos do mapa do Alentejo destaca a este respeito? Acho que hoje temos um trabalho que sonhei fazer durante anos e nunca o fiz, o trabalho feito, nos últimos anos, pelo chef João Rodrigues, no “Projecto Matéria”, um projeto especial que muito ajuda nessa procura regional e territorial. Também fui falando abertamente com os meus cozinheiros, que são alentejanos. Alguns deles têm pais que trabalham no campo. Procurar saber que produtos há, ir ao mercado, conhecer esses pequenos produtores, às vezes, não é fácil. Tem sido um trabalho de equipa desde o princípio. Falei com o Miguel [Dominguinhos], do Poda, que é um restaurante relativamente novo aqui, que tem uma carta feita pelo chef [João] Narigueta, que tem o Híbrido, em Évora, e que é daqui da região. Sempre que procuro saber sobre um fornecedor de um produtor que gostava de ter, falo com eles. Estão sempre 100% abertos a ajudar, a dar contactos e a promover esses contactos. É essa interação que nos faz crescer e nos ajuda.
Quão profícuo em matéria de agricultura e criação de gado é o concelho de Montemor-o-Novo? Temos borrego, porco, novilho, produzidos aqui. Temos legumes, frutas. O mar está relativamente perto. Hás aqui produtos que, às vezes, nem chegam à cidade, pelo menos de uma forma tão banal. Este acesso fácil aos produtos e aos produtores dá-nos a possibilidade de testar e conhecer. Se calhar não usamos hoje, mas podemos usar mais tarde. Tem sido um crescimento profissional ótimo.
Como se desenha uma experiência gastronómica única, sem imitar outros nem defraudar expectativas de quem está à mesa de um restaurante de fine dining? Tem sido um dos meus maiores desafios, o que me tem tirado mais o sono e deixa-me menos confortável: perceber como encontro o caminho, depois de 12 anos de Belcanto, sendo a referência da gastronomia e da restauração nacionais, em que construi uma cozinha e uma equipa que sempre acreditei. Como começo um projeto sem que haja comparações e sem defraudar expectativas? Este cruzamento de fazer diferente do que acreditamos e construímos durante 12 anos. Tenho de acreditar que o que tenho de servir vai ser uma experiência ótima para os hóspedes, os clientes, mas sempre com receio de ouvir alguém dizer ‘este aqui foi influenciado pelo Belcanto’. Não quero correr esse risco. Tenho de me reinventar de uma forma equilibrada, porque o que é bom para mim, foi o que fiz nos últimos anos da minha vida, que tem o sucesso que tem. Não posso deixar de fazer aquilo em que acredito.
E agora? Haverá pessoas a fazer esse comentário, outras que estão a esperar algo completamente diferente. O caminho da reinvenção vai levar algum tempo. Nunca farei algo em que não me sinta confiante de que estou a servir uma cozinha em que acredito e com a qual me identifico.
Luis Ferraz
Quais os ingredientes basilares na consolidação da identidade do Mapa, que permitam o corte com o passado, de modo a elevar a excelência do serviço e da comida que são exigidas neste restaurante? Quando vim cá jantar, para conhecer a cozinha que estava aqui a ser feita, não tinha ideia do que se fazia era ótimo! Tinha uma linha completamente diferente daquilo em que acredito e gosto de cozinhar, mas era muito cuidada, muito saborosa, e isso fez-me perceber que há uma equipa cheia de potencial lá dentro. Que fazem com amor, com carinho, com gosto e com o que é mais importante num prato: o sabor. As texturas e o produto eram, de alguma forma, defendidos e a cozinha estava num ponto ótimo. Agora, vamos querer defender os pequenos produtores e trabalhar ainda mais produtos regionais de excelência que temos, fazer uma cozinha baseada nos sabores e na contemporaneidade da cozinha portuguesa, e trabalhar as influências dos sabores das viagens que fizemos. Para a sala, consegui trazer alguém que é da minha confiança, o Luís Mira, com quem trabalhei durante seis ou sete anos no grupo Avillez. Conhecemo-nos bem pessoal e profissionalmente. Sei que é uma pedra basilar na formação da equipa de sala e para chegarmos aos padrões de serviço que queremos, do mesmo modo que tenho de formar a minha equipa, no sentido de mudar alguns hábitos de trabalho. Tudo demora o seu tempo, por isso vamos construir com calma. As mudanças são progressivas. Estou super confiante.
Em que medida está a ser traçada a rota no Mapa rumo à recuperação da estrela Michelin? É muito cedo para falar sobre isso, mas quem é que não fica contente se um dia a estrela Michelin chegar? Agora, ser esse o objetivo ou a base do conceito que aqui se quer fazer, são coisas completamente diferentes. Queremos implementar um serviço de sala e de cozinha num conceito gastronómico que seja agradável para todas as pessoas que venham cá, que seja um momento para se lembrarem para o resto da vida. Quero sair daqui muito feliz com o trabalho da minha equipa e da equipa de sala. Quero ser feliz, mais nada! Houve muitos anos em que trabalhei sem pensar nas estrelas, mesmo que as pessoas pensassem o contrário. Trabalha-se para fazer bem todos os dias, o melhor todos os dias. Essa é a base do crescimento pessoal e profissional, ir para casa e pensar ‘hoje fui melhor do que ontem’, seja no que for. Se isso acontecer, ótimo. Nunca vou pôr esse peso nem sobre a minha equipa, nem sobre a equipa de sala, nem em cima de mim. Acho que as pessoas que nos rodeiam, pelo meu percurso, têm essa expectativa, mas isso não me vai tirar o sono!
Chef David Jesus
Foto: Luis Ferraz
O novo restaurante Mapa (L’AND Vineyards, Herdade das Valadas, 4, Montemor-o-Novo. Tel. 266242400) convida a viajar, explorar e saborear os “Caminhos” (€140) desenhados pelo chef David Jesus e a equipa de cozinha deste restaurante de fine dining de terça-feira a sábado. O horário de funcionamento para o almoço é das 13h00 às 14h30 e, ao jantar, entre as 19h00 e as 21h30. Já o Café da Viagem permanece aberto todos os dias, das 12h00 às 22h00.