Muitas e muitos de nós temos assistido com verdadeira agonia à tomada do Afeganistão pelos talibãs. E por mais que na primeira conferência de imprensa dada tenham tentado branquear a realidade, dizendo que as mulheres nada têm a temer e que os seus direitos não serão obliterados, não pode haver alguém que acredite nisto. Até porque a mensagem, por mais subtil que seja, é clara: os direitos das mulheres mantêm-se, mas “dentro do quadro da lei islâmica e do respeito dos valores tradicionais afegãos”. O que isto quer dizer na prática ninguém explica, mas lembra-nos o passado recente do país às mãos dos extremistas que a deturpação da religião como justificação para políticas de terror e de repressão são a uma realidade demasiado provável. Não é ao acaso que uma das primeiras ações levadas a cabo em Cabul tenha sido apagar todas as imagens femininas dos locais públicos. Mais simbólico quanto ao que se pode esperar do futuro das mulheres, impossível. Regressará o obscurantismo, o radicalismo, a sharia. Regressará o desrespeito pelos direitos humanos, principalmente os das meninas e das mulheres. Regressará a total invisibilidade feminina. As mulheres, aquelas que sobreviverem, perderão a voz, a liberdade, a dignidade. Deixarão de ser pessoas, cidadãs, para serem meras sombras, com o seu destino deixado à mercê dos homens. E muitas, demasiadas, não terão sequer a sorte de terem homens nas suas famílias que as tentem ou sequer queiram proteger.
Não escrevo ao acaso a última frase do parágrafo acima. Relatos dos últimos dias – como este publicado no "The Guardian" – mostram como a par dos combatentes talibãs que tomaram Cabul, vão saindo também da toca todos os homens que nunca encararam com bons olhos as conquistas femininas das últimas duas décadas. E falo de conquistas tão básicas como o acesso à educação, ao trabalho ou à liberdade individual para algo aparentemente tão simples como sair sozinha à rua ou assistir a um evento desportivo. Sucedem-se os relatos das humilhações públicas que muitas têm sofrido na rua por homens que as vaiam, que as perseguem, que lhes gritam que finalmente vão voltar para o seu lugar, que é em casa, que acabou a boa vida de andarem sem burka, que deixam no ar a promessa nojenta de que “daqui a uns dias estou casado com três ou quatro iguais a ti”. Estamos em 2021, e como se lê em vários relatos das afegãs, além dos talibãs têm também agora de enfrentar a ameaça de todos os outros homens que simplesmente odeiam as mulheres. E que voltam a sentir legitimidade total para as tratarem como objetos porque, no fundo, é isso que muito provavelmente elas passarão a ser aos olhos de quem agora lidera o país.
Numa tentativa de atirar areia aos olhos da comunidade internacional – que talvez assim se sinta menos culpada e validada na sua passividade perante o terror de milhões de pessoas - o porta-voz dos talibãs garantiu que as mulheres poderão continuar a estudar, a trabalhar e até a terem participação ativa na vida política. Se isto não fosse tão trágico dava para rir. Na realidade, as mulheres estão neste momento escondidas em casa, a queimarem diplomas académicos e demais documentos de conquistas que agora podem ser a sua sentença de tortura ou de morte. Tão simples quanto isto, até porque muitas casas já começaram a ser alvo de buscas. Um pouco por todo o país, as mulheres têm sido banidas dos seus empregos e inúmeras escolas femininas foram fechadas. Sem surpresas – e como me dói dizer isto desta forma – as famílias já começaram a ser incitadas a dar as suas mulheres e adolescentes solteiras para “noivas” dos combatentes, que merecem esse ‘prémio de consolação’ por todo o seu esforço. Os que não o fizerem a bem, farão à lei da força. Muitas já foram entregues, tal qual sacas de batatas. Quantas meninas e mulheres acabarão como escravas sexuais? Torturadas se resistirem ao seu destino? Alvos de castigos públicos para servirem de exemplo, como amputações, apedrejamentos e demais atrocidades? Mortas como baratas, porque as suas vidas pouco valem para todos estes homens que as veem como objetos e não como seres humanos?
A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES EM CENÁRIO DE GUERRA EXISTE HÁ TANTO TEMPO QUANTO A PRÓPRIA GUERRA
Claro que há um contexto específico no Afeganistão que tem de ser tido em consideração. Mas dizermos que isto só está a acontecer porque há um determinado contexto de extremismo religioso pelo meio ou porque se passa em determinada zona do globo, não é verdade. O mesmo mundo, incluindo o Ocidental, que se mostra incrédulo perante tudo isto deve ter a capacidade de olhar para trás e recordar que a violência atroz e gratuita contra as mulheres em cenários de guerra existe há tanto tempo quanto a própria guerra. E mesmo que se prolongue no tempo, fica invariavelmente de fora das estatísticas e dos livros de história, como se fosse um mal menor ocorrido dentro das inúmeras atrocidades destes conflitos. Afinal, como se dizia nos tempos da nossa guerra colonial para tentar justificar o injustificável, “guerra é guerra”.
As violações em massa, o abuso de poder sobre o sexo feminino, a exploração sexual, a escravatura, a desumanização inenarrável das meninas e mulheres não são novidade na história mundial. E nem precisamos de ir muito atrás, basta olharmos para o último século para concluirmos quão sistemáticas são estas forma de violência nestes contextos: por exemplo, durante a Segunda Guerra Mundial os soldados japoneses raptavam mulheres e meninas sul-coreanas e punham-nas em bordéis para que os soldados pudessem “aliviar a tensão”. Violadas dezenas de vezes por dia, eram as chamadas mulheres de conforto e só em 2015 viram ser feita justiça. Na mesma época, os russos fizeram o mesmo às alemãs, por exemplo, e os alemães fizeram-no às russas, às polacas e por aí fora. Os soldados norte-americanos fizeram o mesmo a milhares de meninas e mulheres vietnamitas durante a Guerra no Vietname. Já durante a Guerra na Bósnia, os soldados sérvios tinham verdadeiros campos de violações. Nos últimos anos, o Boko Haram têm raptado milhares de nigerianas para se tornarem ‘esposas’ forçadas dos seus soldados. O Daesh usou e continua a usar a mesma tática no genocídio da minoria Yazidi. Também não assim há tanto tempo foram revelados os crimes sexuais cometidos por soldados e funcionários da ONU em África, caso dos soldados franceses que trocavam biscoitos e águas por sexo oral com crianças. Até os supostos ‘bons da fita’ o fazem, usando e abusando das que vivem situações de desespero, miséria e medo. O mesmo em campos de refugiados sírios em plenas portas da Europa, onde as mulheres vivem em constante pânico do que lhes pode acontecer a si e às suas filhas. E esta lista podia continuar durante vários parágrafos.
Mesmo no horror da violência da guerra e dos cenários mais repressivos que possamos imaginar, a desigualdade de género está lá, muitas vezes usada até de forma estratégica. Por exemplo, maltratar as mulheres faz parte da teia de demonstração de poder perante o inimigo - violar mulheres pode ter como intuito principal atacar a honra dos outros homens, pouco interessa a honra ou sequer a vida delas. Mas é também uma eterna forma de perpetuação implícita do machismo estrutural que governa o mundo, do lugar de homens e mulheres, do status quo. O lugar deles é o do poder, o delas é o da invisibilidade. Eles têm direito aos corpos e vidas delas, elas devem ser submissas e aceitar as sevícias como uma regra do jogo de quem é relegado para uma segunda categoria de ser humano.
Mas porque é que em guerras que invariavelmente são entre homens, feitas por eles e para eles, são as mulheres os maiores alvos de todas estas formas de violência? Porque é que a validação do poder masculino passa tanto pela opressão das mulheres como demonstração de supremacia absoluta? E se sabemos todos de antemão que é isto que acontece, porque é que continuamos a falhar a todas estas meninas e mulheres mundo fora? O que nos diz sobre a forma como continuamos a encarar com permissividade, e até benevolência, estas formas agonizantes de violência de género, normalizando-as por acontecerem em contextos conturbados? Faremos também nós parte do enorme puzzle que desvaloriza o valor da vida, da liberdade e da dignidade no feminino? Se não fazemos, como podemos então justificar que raramente seja feita justiça? Ou que fazer essa mesma justiça não seja uma prioridade total, conjunta e concertada?
Por mais hedionda que seja a restante carnificina e violação de direitos humanos ocorridos em cenário de conflito, está na altura de se perceber que nada legitima a desvalorização dos terrores acrescidos a que as mulheres são submetidas só por serem mulheres. Como diria o Nobel da Paz Denis Mukwege, médico congolês que tem dedicado a vida a tratar milhares de mulheres vítimas dos horrores dos homens em tempos de guerra: “Não são apenas os que praticam a violência que são os responsáveis. São igualmente responsáveis os que optam por desviar o olhar”. Se não podermos fazer mais nada, pelo menos olhemos.
Paula Cosme Pinto, diretora de contas na agência de comunicação O Apartamento. Curiosa a tempo inteiro nas questões da igualdade, com formação no Centro Interdisciplinar de Estudos de Género.