Antes de me alongar, um aparte inicial para que fique claro: não conheço pessoalmente nenhuma das mulheres envolvidas. Mas por ambas nutro exatamente o mesmo: respeito pelos seus trabalhos e livre arbítrio. E penso que é a questão do livre arbítrio, da autodeterminação, que vai sendo aqui usada como contraponto a uma crítica que nada tem a ver com isto. Quando a jornalista Fernanda Câncio – que, já agora, por sua escolha tem usado o seu trabalho para fazer mais pelos direitos das mulheres em Portugal do que muita boa gente que é paga e tem obrigação de o fazer – escreve no Twitter (imagem em baixo) que “é espantoso como é q a tv pública continua a usar mulheres como adereços desta forma repugnante”, há algo que me perece muito óbvio: a crítica é ao canal de televisão, ao programa em questão, e em nenhum momento à mulher que é objetificada, tal qual adereço, pelo guarda-roupa que lhe foi atribuído.
A crítica implícita neste tweet não é tampouco ao direito individual que esta mesma mulher tem de aceitar voluntariamente estar naquele papel, de usar por livre vontade a roupa que lhe é escolhida pela produção, ou até mesmo de sentir gozo em fazê-lo. Nem muito menos de lucrar com isso. Lenka faz o que quiser com o seu corpo e com a sua imagem, usa a roupa que quiser, a isto chama-se autodeterminação e ninguém tem nada a ver com isso. A questão, ou questões, é outra: porque é que em 2021 um canal de televisão, ainda por cima uma estação pública, continua a fazer estas opções de guarda-roupa em assistentes femininas? Será ao acaso a escolha de um micro-vestido? Tem um intuito sexualizante por trás ou é meramente inocente? É preciso sermos ingénuos para acharmos que sim.
A sexualização das mulheres serve não só para conquistar a atenção do público masculino (público esse que tem mais poder económico, mas esta é discussão para outro texto), mas também para alimentar o status quo de dominação entre homens e mulheres, e de expectativas sobre o que é suposto eles e elas serem em sociedade. E das mulheres ainda é esperado que sejam os tais “pares de jarras” ao lado dos homens que Câncio mencionava noutro tweet sobre isto. Já dos homens espera-se de forma redutora que ainda babem por uma mulher de vestido curto, e que as sexualizem de acordo com as suas indumentárias, retirando-lhes todas as outras suas dimensões. E que se deixem levar por isto, como se tivessem um défice intelectual para mais.
NENHUMA MULHER ESCAPA À ENGRENAGEM SOCIAL DA OBJETIFICAÇÃO FEMININA
Contudo, sejamos realistas também quanto a isto: em 2021 o tamanho de um vestido ou de um decote ainda dita muito sobre a nossa índole, o nosso valor e valores, o respeito de que somos merecedoras ou não, o nosso intelecto, o nosso papel, a nossa própria humanização enquanto pessoas. E esta deveria ser uma das grandes discussões a ter quando se fala de objetificação feminina, até porque quer queiramos, quer não, estamos todas enfiadas nesta engrenagem criada por um sistema patriarcal dominante que serve de estrutura à sociedade em que vivemos. A lei mudou, e os princípios constitucionais da igualdade fazem felizmente já parte da nossa vida. Mas as mentalidades ainda não acompanham e nós mulheres vivemos ainda muito sob estas regras do jogo que são tão difíceis de questionar quando nos chegam desde pequenas como verdades absolutas, a ordem natural das coisas. E da televisão ao cinema, da música à moda, todos e todas sabemos que é isto que acontece: a nudez feminina é continuamente usada para captar atenção, e essa atenção rende audiências, consequentemente gera negócio e, é claro, dinheiro. Mas não só. Serve também para vincar a manutenção dos tais lugares de cada um e cada uma na sociedade.
Não é ao acaso que, por exemplo, o sector da publicidade tem vindo a ser alvo de maior regulamentação, sendo a proibição das mensagens sexistas e desumanizantes uma das grandes mudanças em curso. Em jeito de comparação, a crítica que tem sido feita à publicidade não é às mulheres que surgem nestas imagens em outdoors e revistas tantas vezes em poses erotizadas, outras completamente nuas para vender serviços ou produtos que nada têm a ver com os seus corpos. Elas estão só a fazer o seu trabalho e, resumindo isto assim ao básico dos básicos, as pessoas precisam de dinheiro para pagar as contas, trabalho é trabalho. Se o sector é assim há décadas é difícil questionar, portanto aceita-se fazer parte dele. No fundo, é isto que se espera de nós. Por outro lado, elas também têm o direito de gostar de o fazer de não se sentirem incomodadas com isso. Em boa parte, esta aceitação pode muito bem resultar da normalização destas escolhas e mensagens implícitas, mas mais uma vez, isto é tema para outro texto.
Voltando ao que interessa agora: a crítica não é às mulheres objetificadas, é, sim, ao facto de ainda ser assim que tantas marcas representam as mulheres, invariavelmente com recurso à sexualização da sua imagem, para vender o que mais lhes convém. E ao facto de vivermos num mundo onde uma porcaria de um vestido curto ainda determina o cariz sexual da imagem de uma mulher. A crítica vai para as equipas criativas e de produção, empresas, marcas, canais de televisão, etc., que ainda consideram que é esse cariz sexual que chama a atenção dos consumidores, alimentando esta visão distorcida dos mesmos sobre os corpos e lugares das mulheres. A crítica vai para todas as indústrias que vivem disto e que se descartam da sua responsabilidade enquanto mensageiros que chegam às massas.
Paula Cosme Pinto, diretora de contas na agência de comunicação O Apartamento. Curiosa a tempo inteiro nas questões da igualdade, com formação no Centro Interdisciplinar de Estudos de Género.
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