“Nuas” ou “ao fogão”, é esse o lugar das jogadoras do Mundial de Futebol Feminino
“Deviam era estar nuas.” “Futebol feminino é como cerveja sem álcool, é ridículo.” “O lugar da mulher é ao fogão.” Arranca em breve o Campeonato do Mundo de Futebol Feminino, que nesta edição já tem jogos esgotados e receitas históricas. Contudo, quando saiu no Brasil uma caderneta com as jogadoras das 24 seleções os comentários misóginos não se fizeram esperar: pelos vistos, as mulheres só interessam enquanto objeto de desejo sexual ou de manutenção doméstica
Começa em junho e desta vez é realizado em França, com números record não só quanto ao interesse do público e transmissões televisivas, mas também no que toca a receitas publicitárias e patrocinadores envolvidos. Já foram vendidos quase um milhão de bilhetes para o Campeonato do Mundo de Futebol Feminino, que vai receber 24 seleções de vários pontos do globo. Partidas como o jogo de abertura ou a grande final já estão totalmente esgotados (este último ficou 'sold out' em menos de 25 minutos depois de os bilhetes serem postos à venda). Não há dúvidas de que o futebol feminino tem vindo a evoluir exponencialmente nos últimos anos, e que há cada vez mais fãs e marcas que o levam a sério, mas a verdade é que o desporto de alta competição que tem mulheres como protagonistas ainda enfrenta discriminações múltiplas, tanto dentro do próprio sector, como também por parte do público.
As reações em catadupa ao lançamento de uma caderneta de cromos com as fotos da jogadoras das várias seleções que vão participar no Campeonato do Mundo de Futebol Feminino são exemplo do machismo e desdém que continuam a imperar quando falamos de desporto feminino. Por mais que nos possam parecer inofensivos, comentários como “elas deviam era estar nuas”, “jogadoras em biquíni é que era”, “a seleção americana é melhor do que qualquer revista para adultos”, “o lugar da mulher é ao fogão” e “futebol feminino é uma anedota” são sintomáticos de um machismo estrutural que está totalmente enraizado e que continua não só a objetificar sexualmente as mulheres, mas também a ridicularizá-las quando estas se aproximam de competências associadas ao sexo masculino.
É curioso perceber como a erotização das mulheres acontece de forma totalmente primária como reação a um conjunto de imagens femininas que nada têm de cariz sexual. Estamos a falar de jogadoras de futebol e de uma caderneta relacionada estritamente com esta modalidade desportiva. Os seus atributos físicos podem interessar no máximo para o seu desempenho em campo. Então porque é que a tendência é fazer comentários sexuais sobre os seus corpos? Será que quando nos deparamos com uma caderneta de jogadores do sexo masculino é também esse o nosso primeiro pensamento? A imagem feminina continua a estar altamente permeável a uma remissão automática para o estatuto de objeto de desejo e de prazer, e isso diz-nos muito sobre a forma como as mulheres ainda são encaradas nas sociedades dos tempos de hoje. Ser um ser sexualizável faz parte do suposto papel da mulher, que deve simplesmente levar isto como uma brincadeira inocente, uma regra do jogo, algo que faz parte da normalidade. Desculpem-me, mas já vai sendo tempo de percebermos que não é.
Desacreditar as mulheres faz parte da manutenção da soberania masculina
A sexualização das imagens femininas não tem nada de inofensivo, tal como não é inofensivo o desdém com que se fala das mulheres quando estas alcançam esferas que durante muito tempo foram exclusivas do domínio masculino. Ironizar e desvalorizar as conquistas femininas, remetendo quem as consegue alcançar para esferas como o mundo doméstico ou os cuidados familiares é simplesmente tentar perpetuar as ditas regras do jogo que já deveriam estar totalmente ultrapassadas, mas que continuam a estipular quais os papéis certos e errados para cada sexo no mundo em que vivemos.
Tal como em tantos outros universos profissionais, de forma mais ou menos subtil, à mulher continua a ser dificultado o acesso, o crescimento, o protagonismo e o reconhecimento. Tudo isto faz parte de uma manutenção da soberania masculina, por mais inconsciente que esta até possa ser. Desacreditar as mulheres com recurso a este tipo de comentários sexistas é apenas uma das múltiplas formas de criar-lhes obstáculos que na realidade continuam a servir de entrave à vontade de tantas meninas e mulheres mundo fora, que simplesmente depois não se conseguem rever nestes papéis porque o mundo lhes diz continuamente que não é esse o seu lugar. Se mesmo uma jogadora como a famosa Marta, que já marcou mais golos ao serviço da sua seleção do que Pelé, é desdenhada publicamente enquanto futebolista, como é que queremos que aspirantes a futebolistas não tenham dúvidas quando decidem que é esta a carreira que gostavam de abraçar? Haverá alguém que gosta de ser vexada em praça pública? Então porquê arriscar? Felizmente, há muitas mulheres que ao longo da história foram arriscando, com inúmeros prejuízos para as suas vidas, não podemos esquecer isto. A elas devemos agradecer tantas e tantas coisas que hoje temos só como dados adquiridos.
Claro que haverá sempre algo mais importante e grave para debater, mas isto também faz parte do dito caminho para a igualdade. Um caminho que se faz de grandes e de pequenos passos, acesso e mérito igualitário no desporto incluídos, por mais que isto nos possa à partida parecer irrelevante. E enquanto tivermos respostas misóginas e desrespeitosas em massa como reação automática a algo tão simples quanto uma caderneta de cromos, só porque as protagonistas são mulheres, é sinal de que as mentalidades machistas continuam a ser uma barreira para o percorremos de forma plena.