De acordo com o artigo do DN publicado ontem, eis o arranque do convite enviado pela Direção Regional Sul da Associação Sindical de Juízes às suas sócias e sócios: "Comemorando-se o Dia Internacional da Mulher, a Direção Regional Sul - Associação Sindical dos Juízes Portugueses realizará no próximo dia 8 de março um workshop de maquilhagem”. Bem, há alturas em que mais vale assumir que demos um tiro no pé do que tentar sacudir a água do capote. Não fica nada bem à ASJP tentar chutar o ónus dos estereótipos de género para cima de quem questiona o sexismo inerente à escolha de um workshop de maquilhagem, e afirmar com unhas e dentes que nada disto tem a ver com aquela data específica, quando o convite que foi enviado começa desta forma. Assim como dizer que há homens e mulheres inscritos não retira o efeito simbólico e desrespeitoso de uma escolha destas para uma data como o dia 8 de março.
Vamos por partes: fico muito contente que a ASJP não prive os seus sócios do sexo masculino de participar num workshop de maquilhagem. Bem, nem outra coisa podia ser de esperar num país onde todos somos livres de usar maquilhagem. E ainda bem que há homens que se inscrevem, sendo essa a sua vontade. E também nada contra a programação de um workshop de maquilhagem para juízas e juízes, escusado será dizer que as pessoas – profissionais incluídos – são livres de participar nas atividades lúdicas que bem lhes apetecer. Mas não me tentem convencer de que a data é uma simples ironia do destino. Nem me venham dizer que simbolicamente não há um lado tremendamente sexista na escolha de tal workshop para assinalar o Dia Internacional da Mulher, data essa que evoca as lutas feministas pelos direitos femininos, desde a violência doméstica e femicídio à discriminação laboral, ao abuso e assédio sexual, autodeterminação da mulher sobre o seu corpo e demais questões que se traduzem em prejuízos gravíssimos para as vidas de metade da população do planeta. Um ponto comum a todos estes problemas: os estereótipos de género. E foi precisamente para se combater tudo isto que se implementou este dia.
Sou sexista por constatar que a maquilhagem está maioritariamente associada às mulheres?
Falando em estereótipos de género, a maquilhagem é inequivocamente uma atividade associada ao sexo feminino. E também escusam de me acusar de ser antiquada ao dizer isto, e de alegar que o sexismo está em mim - como fizeram em relação à jornalista do DN –, porque todos sabemos que é este o senso comum, mesmo que também exista um pequena fatia de homens que se maquilham. Eu sei, vocês sabem, todos sabemos. Não é ao acaso que nas imagens do dito convite apenas surjam representações femininas. Nem tampouco o é se abrirmos um catálogo deste tipo de produtos e o que encontramos lá dentro são fotos de mulheres. Se procurarmos tutoriais de maquilhagem, são mulheres que também encontramos. Se ligarmos a televisão e virmos uma publicidade a maquilhagem, são mulheres que vamos ver. Sejamos todos mais honestos: se pensarmos em maquilhagem, é em mulheres que pensamos automaticamente.
Isto não quer dizer, lá está, que não existam homens que usam maquilhagem, mas se eu tivesse de especular quanto a percentagens de consumidores destes produtos, diria que os do sexo masculino pouco passarão dos 10%. Era como se tivessem organizado um workshop de culinária para o Dia da Mulher (e neste caso a percentagem de homens que alinham na atividade até é substancialmente maior): simbolicamente, remeteria para um universo ainda associado às tarefas e dinâmicas esperadas do sexo feminino pela via da construção social sobre o seu papel no mundo. Escusado será dizer que o simbólico tem um efeito bastante real no concreto. E nesta data específica, o concreto leva-nos ao encontro dos desafios da dimensão atroz da violência de género no mundo, sendo que em Portugal nunca foi tão premente o debate público sobre aquela que acontece dentro das relações de intimidade. E se andamos a falar nisto de forma tão concertada ultimamente, não é apenas por causa dos números dantescos de mulheres agredidas e mortas nestes contextos. É também pela ineficiência da Justiça em proteger boa parte destas vítimas.
Uma escolha errada para o dia errado
Ao tema da maquilhagem soma-se outra questão, também ela simbólica: é precisamente com recurso a este tipo de produtos que tantas e tantas vítimas de violência doméstica escondem as marcas resultantes de atos violentos de que são alvo. E escondem-nas precisamente por causa da vergonha social e do medo de serem repudiadas. Um medo e vergonha que são potenciados pela desproteção e vitimação secundária que tantas encontram em tribunal quando tentam pedir que seja feita justiça. Isto não quer dizer, obviamente, que todos os juízes e juízas de Portugal sejam maus profissionais (isso seria uma generalização bastante preconceituosa e irrealista). Mas também não é ao acaso que o nosso próprio Governo decidiu avançar com um reforço de ações de formação para magistrados especificamente sobre este tipo de crimes, além da elaboração de guias de boas práticas nas áreas da violência contra as mulheres, violência doméstica e tráfico de seres humanos. Se isto acontece, é porque algo vai mal nos nossos tribunais.
Vejamos, também não me parece que este workshop fosse organizado com más intenções – nestas questões raramente há más intenções com ponto de partida. E também não interessa se foi um homem ou uma mulher a organizar, o sexismo e a falta de noção não têm género. Mas quando percebemos que fizemos uma escolha errada, para a hora errada, há que assumir em vez de se tentar justificar o injustificável. Noutro dia qualquer isto não seria um problema, era apenas uma atividade lúdica. Mas neste, lamento, não é o caso. Com outro grau da gravidade, é como oferecer flores e levar a mulher a jantar a 8 de março: pode ser feito com boas intenções, mas está totalmente desfasado da importância e objetivo desta data. E uma associação que representa profissionais que têm um estatuto de poder sobre as vidas dos cidadãos e cidadãs deste país devia ter isto em conta.
Mais uma vez voltando ao simbólico, a mensagem subliminar que passa é que esta classe não está alinhada com as preocupações sociais de uma agenda que é global. E que a igualdade de género e a luta pelo fim das múltiplas formas de violência contra as mulheres não fazem parte das preocupações dos nossos magistrados. Mesmo que não seja essa a realidade de muitos juízes e juízas do nosso país, é esta ideia que as pessoas levam para casa ao saberem disto, incluindo os agressores.
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