A necessidade de resposta urgente à pandemia teve como primeiro dano colateral uma tremenda crise económica. Porém, a verdadeira tragédia na resposta à Covid-19 é o impacto que teve nos restantes utentes do SNS com outras patologias “não-Covid”, aumentando o número de mortes e o agravamento de doenças face a anos anteriores, por simples falta de assistência ou até devido ao adiamento consecutivo de consultas e cirurgias, apesar dos esforços inglórios de todos os profissionais de Saúde. Importa por isso colocar toda a disponibilidade de recursos a trabalhar para o mesmo objetivo, sem preconceitos. Mais do que nunca Portugal, e sobretudo os portugueses, precisam de todos.
A verdade é que a capacidade instalada do SNS, mas também dos sectores privados terão sido reduzidas pela necessidade de manter o distanciamento social entre pacientes. A título de exemplo, onde antes da pandemia existiriam 800 camas, deverão estar agora apenas 600. Além do mais, como os médicos e enfermeiros não caem do céu nem se inventam de um dia para o outro, é impossível arranjar muito mais meios humanos e instalações de um momento para o outro. A solução para um aumento da procura só pode ser colocar, desde já, todos a trabalhar para o mesmo objetivo: salvar pessoas, tenham ou não Covid-19.
São números públicos, mas nunca é demais repeti-los: só entre março e agosto deste ano morreram em Portugal quase mais 6 mil pessoas do que no mesmo período de 2019. É verdade que a variação resulta do aumento de mortes em pessoas com mais de 75 anos, mas a Covid-19 explica apenas 30 por cento desta mortalidade. E se até agora morreram em Portugal mais de 2 mil pessoas por Covid-19, isto demonstra claramente que há um excesso de mortalidade, na ordem dos mais de 4 mil óbitos, motivados por outras causas.
Se este tremendo dano colateral apanhou muitos de surpresa na primeira vaga, nesta segunda fase tal só pode voltar a acontecer por mera incompetência ou por preconceito ideológico. É evidente para todos que o Ministério da Saúde não tem meios suficientes para dar uma resposta simultânea à Covid e às restantes doenças, pelo que o caminho só poderá passar por coordenar com os restantes hospitais do sector social e do sector privado as diversas respostas que são hoje mais do que urgentes.
Agora, dirão alguns, que sou um tipo da direita a querer aproveitar esta oportunidade para dar mais dinheiro aos privados por questões ideológicas. Não é preciso, porque este Governo de esquerda já acabou por dar mais dinheiro aos hospitais privados do que qualquer outro executivo de direita, por exemplo através dos chamados vales-cirurgia do CIGIC – o Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia. Fê-lo não por qualquer opção ideológica, mas por pura e simples incompetência. A má gestão, a passagem das 40 para as 35 horas semanais para todas as classes profissionais dos hospitais públicos, o desinvestimento generalizado ou o investimento sem critério, a ausência de qualquer estratégia, levaram à ineficiência e ao atrofiamento do SNS, que se viu obrigado a recorrer mais vezes ao privado para responder aos seus doentes, nomeadamente perante o brutal agravamento de listas de espera.
Basta lembrar – e são dados públicos da Administração Central do Sistema de Saúde – que em março deste ano estavam 81.488 doentes fora dos tempos de espera clinicamente aceitáveis para cirurgias (33% do total de inscritos), em abril 95.600 (39%) e em maio 103.912 (43%).
Com o agravamento da pandemia e das doenças não-Covid, podemos imaginar o que terá acontecido a estas pessoas desde maio até aos dias de hoje e daqui em diante. Provavelmente lamentaremos mortes que poderiam ter sido evitadas.
Numa crise como a que atravessamos, insistir em não recorrer, de forma coordenada e concertada, às instituições privadas e do sector social, só se pode justificar por puro preconceito ideológico. É em alturas como esta, de verdadeira emergência nacional, que os três sistemas têm de ser complementares pois não podemos deixar ninguém para trás.
Nesta matéria, a própria ministra da Saúde alimentou, ou não esclareceu, parte da desinformação que a esquerda radical e algumas pessoas menos informadas tentaram passar, de que os hospitais privados, numa determinada fase, não estavam a aceitar doentes com Covid. Importa esclarecer que foi o próprio Governo e a DGS que definiram que todos os doentes Covid deveriam ser atendidos em exclusivo nos hospitais públicos de referência. Numa primeira fase, todos os privados – CUF, Luz Saúde e Lusíadas, só para referir os três maiores grupos privados de Saúde – se disponibilizaram a acolher doentes Covid do SNS. Foi o Ministério da Saúde que resolveu afirmar que o SNS tinha capacidade instalada e que dispensava o apoio dos privados. E, mesmo assim, a única unidade privada que fechou serviços durante esta fase e se recusou a funcionar durante algum tempo foi o SAMS, que até era liderado por um deputado do Partido Socialista.
Perante esta segunda vaga que já chegou, com o eminente colapso dos hospitais públicos, os privados voltaram a afirmar a sua disponibilidade para “fazer de SNS” ou “ajudar o SNS”, aliviando o sistema público dos doentes não-Covid, enquanto os hospitais do Estado se poderiam concentrar em tratar todos os infetados pela Covid. Seja neste modelo ou qualquer outro, só sairemos desta segunda fase com menos danos colaterais, com menos mortes e com menos doenças agravadas, se estivermos unidos, sem separações ideológicas artificiais.
O primeiro-ministro e a ministra da Saúde, têm de demonstrar a inteligência e a humildade de recorrer aos três sectores existentes no nosso país e encontrar um modelo eficaz que reúna público, privado e social na resposta aos doentes, a todos e não apenas aos infetados com Covid-19, durante esta nova escalada.
Claro que tudo isto não se faz sem pagar um preço. Afinal, no privado também se pagam salários a profissionais, até se pagam as despesas e os materiais a horas aos fornecedores – e tudo isto tem custos – sendo que, pelo que se sabe, os valores cobrados nos hospitais privados são inferiores aos praticados no SNS por doente-padrão.
Há modelos e métricas previstas para negociar este tipo de parcerias e, a bem da saúde dos portugueses, dispensa-se um braço de ferro mediatizado para fazer de conta que há aqui o lado dos bons e o lado dos maus. Se este for um governo previdente e competente, já deve ter tudo isto acautelado. Não é preciso dividir mais os portugueses, juntando uma crise económica e política a uma profunda crise sanitária.
Só na cabeça do Bloco, do PCP e da Dra. Ana Gomes é que o Estado exige tudo isto sem qualquer retribuição ao sector privado. A Dra. Ana Gomes, aliás, demonstrando que sabe muito pouco sobre Saúde, avançou não só com a ideia bloquista da “requisição civil” dos hospitais privados, mas também dos hospitais em Parceria Público-Privada, ignorando que os chamados hospitais PPP, como é o caso das unidades de Cascais, Loures ou Vila Franca de Xira, acolhem e tratam obviamente doentes Covid e não-Covid. A vontade de recriar a todo o custo uma espécie de Período Revolucionário Em Curso (PREC), também na Saúde, parece falar mais alto do que o estudo responsável dos dossiers.
Que o preconceito e o fundamentalismo não deixem ninguém para trás.
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