Contra-semântica

Gostava que me tivessem deixado em paz

Mas não. Ainda sou do tempo em que a escola me obrigava a frequentar as disciplinas clássicas e a frequentar a escola da vida, essa que me dizia, sem contraditório, dos “maricas”, dos paneleiros”, das “putas” que se punham a jeito, do “ homem não chora “, do “preto da Guiné“, do “cuidado com o cigano“, do “não sejas judeu“, a escola do eu e os outros.

Gostava que me tivessem deixado em paz.

Mas não. Obrigaram-me a frequentar sem objeção de consciência todos os conteúdos das disciplinas de Português e de História e de Matemática e obrigaram-me a frequentar todos os conteúdos da vida habitual de um país, como todos, com problemas graves de desigualdade, problemas esses devidamente normalizados na minha cabeça, porque o sistema educativo não fazia da sua descontração uma das facetas do direito fundamental à educação .

Como não me deixaram em paz, frequentei a escola toda da desigualdade , da falta de empatia, inspirei-me nos ingredientes fatais para uma péssima cidadania. Foi por isso que para muita gente da minha geração a consciência da militância pela igualdade resultou de uma descontração pessoal tardia e, mais grave , há quem tenha caído em padrões de agressão, de homofobia ou de racismo precisamente porque foi deixado em paz, foi atirado à escola da vida e não a uma disciplina decente de educação para a cidadania .

Teria sido tão bom se lá atrás , tão mais atrás , nos tivessem deixado em paz . Teria sido tão bom que a escola pública tivesse cumprido o seu papel mais cedo , esse de nos preparar para a não demissão da cidadania . Felizmente agora não deixamos crianças e jovens atirados a uma escola da vida desigual , antes apostando , ainda que fragilmente, em tópicos tão simples como desenvolvimento de competências pessoais e sociais, promoção do pensamento crítico ou desenvolvimento em áreas não formais como a atitude cívica individual .

Objectar a isto é, claro, objectar à cidadania. Deixar as crianças em paz , dizem , como o Bolsonaro. Antes fosse.

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