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Cat Power em entrevista: “Nunca pensei chegar aos 21 anos. Estive só a sobreviver. Agora aprendi a não olhar para o meu passado com dor”

Cat Power
Cat Power

É uma das grandes figuras da música independente das últimas três décadas e acaba de lançar um novo disco, com versões de Nick Cave ou Lana Del Rey. À BLITZ, falou – com a alma com que canta – da sabedoria de quase 50 primaveras e da vontade pouco secreta de se mudar para Portugal

Chan Marshall, a mulher que o mundo da música conhece desde os anos 90 como Cat Power, faz 50 anos dentro de poucos dias. “É já esta sexta-feira! Ai não, é só na próxima”, confunde-se a cantora norte-americana, quando mencionamos a data vindoura. Numa chamada Zoom entre Portugal e Miami, onde vive com o filho Boaz, de 6 anos, a dona de uma das vozes mais intensas do indie revela-se aberta, generosa e combativa. Com um novo disco de versões já disponível – “Covers”, editado esta sexta-feira – Cat Power abraça as canções dos outros com a mesma fé com que dá a mão a meio mundo e à suas causas.

Neste novo disco, tanto canta temas de artistas veteranos, como Iggy Pop ou Nick Cave, como de estrelas mais jovens, como Lana Del Rey ou Frank Ocean. É importante para si reunir música de diferentes eras?
Sempre. Eu cresci com vários membros da família, como a minha avó, e só conheci a minha mãe quando tinha 5 ou 6 anos. Com a minha avó ouvia música country e com o meu pai e o meu padrasto era só rock psicadélico e discos antigos de jazz. A música é uma grande parte da nossa vida, e isso acontece com a maioria das crianças no mundo ocidental. E mesmo em sítios que não têm eletricidade, as crianças crescem com canções tradicionais e tribais. Historicamente, a música é uma enorme segunda pele para os humanos. Quando eu canto uma canção que adoro, é certo que ela vai cobrir várias décadas diferentes. É a realidade da música com que cresci e que adoro. A música é intemporal. Nenhuma grande canção pertence a um tempo específico; elas nunca deixam de ter impacto.

Uma das versões mais curiosas é a de ‘Bad Religion’, do jovem norte-americano Frank Ocean. A letra começa com uma interação com um taxista… foi pela letra confessional que decidiu cantar esta canção?
Foi exatamente por isso. Nos anos 90, tive uma experiência que foi literalmente os primeiros versos dessa canção: “Taxi driver, be my shrink for the hour/And leave the meter running/Just outrun the demons, could you?” Isso aconteceu-me na vida real. O taxista era da África Ocidental e começou a rezar por mim em árabe. Na América, a minha base de fãs é predominantemente judia, católica, cristã ou ateia. Por isso é que decidi mudar a letra. [Na letra de Frank Ocean, o taxista diz: “Allahu akbar”, ou seja, “Alá é grande”, em árabe; na versão de Cat Power, responde com “Praise the Lord/Hallelujah, little girl”]. Decidi cantar esta canção quando andava em digressão com o meu último disco, “Wanderer”, e nos concertos cantava uma canção desse álbum, chamada ‘In Your Face’, que é sobre pessoas como o último Presidente dos Estados Unidos. Homens brancos no poder, em todo o mundo, que exploram, extorquem e destroem o progresso em nome do dinheiro e da guerra. Ao cantar essa letra, ficava… não digo cansada, mas muito zangada, e essa é uma emoção de que não gosto. Então, certa noite, já não sei em que país estava, comecei a cantar a ‘Bad Religion’ e de repente toda a dor, toda a mágoa e toda a memória dos horrores que leio nos jornais, ao descobrir os crimes contra a humanidade que os líderes cometem… Enfim, acho que essa canção me absolveu e jurei a mim mesma que nunca mais voltaria a cantar a ‘In Your Face’. Prefiro cantar a ‘Bad Religion’. Tranquiliza-me, mas de uma forma muito intensa.

No final do ano passado, o vocalista dos Depeche Mode, Dave Gahan, lançou um disco de versões no qual canta uma canção sua, ‘Metal Heart’. Certamente já a ouviu?
Demorei uns meses… só a ouvi há umas duas semanas. Quando aconteceu, simplesmente nem acreditei. Porque para toda a gente que conheço, para o meu grupo de amigos, [os Depeche Mode] são uma das bandas essenciais dos anos 80. O arquétipo do grupo do qual conheces todas as canções… Foi difícil para mim [ganhar coragem] para ouvir a versão. Mas quando a ouvi, e quando ouvi o coro gospel a cantar, fiquei em lágrimas e tive de parar. Porque não é normal alguém fazer versões das minhas canções. É uma honra!

Curiosamente, Dave Gahan diz que se sente mais próximo da sua essência ao cantar canções de outras pessoas, como se reconhecesse a personagem que está por detrás delas. Identifica-se com essa ideia?
Os humanos têm um problema, provavelmente enraizado nas construções sociais militarizadas: não somos treinados para nos amarmos a nós mesmos nem para chamarmos a nós o poder. Nunca pensamos em amor, em amor-próprio, em auto-empoderamento. Provavelmente é por isso que nos é mais fácil ou que gostamos mais de fazer versões, porque sentimos afinidade por outros artistas, como a Billie Holiday, o Nick Cave ou o Bob Dylan. Desde que somos pequeninos, há pessoas que cantam canções que traduzem sentimentos para os quais nunca encontrámos palavras. Isso anima-nos, dá-nos força e percebo perfeitamente que seja mais fácil [cantá-las], porque estamos a cantar uma canção por uma pessoa que é muito estimada. Então claro que é mais divertido. O Dave Gahan explicou isso muito bem.

“Todos carregamos mágoa, mesmo aqueles que, ainda que o mundo esteja a acabar, fingem que fizeram uma lobotomia e não enfrentam os factos”

Chan Marshall (Cat Power)

Alguma vez sente que carrega muita mágoa consigo?
Mas na vida? Na música?

Na vida. Tem um longo historial de perda… amigos que morreram, amor que se perdeu…
Sempre. Penso que faz parte de… não lhe quero chamar reação em cadeia, mas pelas experiências que tenho tido na vida, diria que não só não aprendemos a praticar o amor-próprio como não aprendemos a lidar com adversidade, com a perda e com os problemas de saúde mental. Penso que todos carregamos mágoa, mesmo aqueles que, ainda que o mundo esteja a acabar, fingem que fizeram uma lobotomia e não enfrentam os factos. Quando era mais nova, achava que essas pessoas tinham sorte por viverem num mundo falso e superficial, mas nós, os que temos consciência, [sabemos qual é] o nosso caminho, a nossa jornada. É uma dádiva e um fardo. Julgo que a maior parte das pessoas na Terra carrega essa mágoa, porque não somos robôs. Todos a carregamos, mas em escalas diferentes.

Por falar em perda, há poucos dias partilhou conselhos muito úteis sobre como lidar com a perda dos outros, a propósito da morte do filho de Sinéad O’Connor…
Obrigada, mas não fui eu que escrevi aquelas palavras, só estava a partilhar o que aquelas pessoas [psicólogos e psiquiatras] tinham dito. Perder alguém que amamos é muito difícil, mas saber que alguém perdeu o filho é indescritível. É muito difícil saber que palavras usar para confortar essa pessoa, porque não é algo que aconteça a toda a gente. Acontece a muitas pessoas, sobretudo nas partes do mundo onde a tecnologia não é tão avançada. Mas gostei muito que aqueles médicos partilhassem as suas palavras com a Sinéad e connosco, porque nós é que precisamos de aprender!

Vive em Miami há alguns anos, com o seu filho, Boaz…
Há 20 anos! (risos) Ele já tem 6 anos e durante a pandemia ensinei-o a ler, escrever e fazer contas.

E como correu?
Foi ótimo! Ele sempre viajou comigo pelo mundo: desde os 2 meses que me acompanhava em digressão. Mas com a explosão do movimento dos direitos civis, que na América tinha desesperadamente de acontecer, vivemos tempos muito assustadores. Eu não era nascida aquando da II Guerra Mundial e do Hitler, só posso aprender sobre os horrores [desse período] através dos factos e da História… Mas, agora, tive muito medo pelos meus amigos. Fiquei destroçada e preocupada com os meus amigos negros na América, e os seus filhos, porque nos últimos 20 anos as forças policiais foram todas militarizadas. Agora têm tanques e é absurdo. O sistema tradicional ainda assenta na supremacia branca, e tudo aquilo a que assistimos fez-me lembrar a Primavera Árabe, com as pessoas a não poderem sair de casa… Toda a dor por ter de ver os meus amigos a passarem por isso, a projeção desse espetáculo de ódio e hostilidade… No meu coração sinto, e espero, que [o facto de termos assistido ao que aconteceu] só ajudou a amplificar o movimento, só expandiu a consciência. A nível global, sinto-me muito otimista. Se multiplicarmos o que aconteceu pela eleição de Trump como Presidente e pela pandemia… Acho que não há outro caminho a seguir que não o da esperança e do positivismo, da inclusão e de um mundo melhor.

“Eu só tenho esta voz pequenina… As canções são canções. Não há explicação para a música, exceto que nos emociona e nós precisamos disso”

Chan Marshall (Cat Power)

Numa entrevista recente à revista “Mojo”, diz que desde criança sempre adorou cantar…
E não adoramos todos? Já olhaste para os miúdos no nosso mundo? Estão sempre a cantar. Não sabemos o que raio estarão a dizer, mas estão a cantar. Até as árvores, as folhas – há provas de que as árvores comunicam entre si! As baleias, os lobos, os pássaros, os insetos… é parte da vida.

Quando eu era criança, disse sem pensar que queria ser cantora e a reação dos presentes foi de chacota generalizada…
Isso é programação social. É fruto de uma sociedade masculina de base militar. “Não és nada, nunca vais ser nada! Come as batatas e o pão e olha para o chão… e és mulher, e és criança!” Na minha opinião, a religião e o militarismo sempre mantiveram os humanos subjugados. Mas nós só temos esta vida. No nosso tempo de vida, provavelmente vai haver milhões de crianças e de famílias lindas, mas esta é a nossa vida, agora. Essas reações vêm do medo. “Não te afastes da tribo!”

Fala várias vezes da forma como as mulheres são facilmente rotuladas como loucas. Acredita que a sociedade está a evoluir positivamente nesse aspeto?
Tal como nos direitos humanos e nos direitos civis, não é tudo preto ou branco, há áreas cinzentas. O medo reside no preto e branco, no yin e yang. Mas há uma linha que separa estas cores todas, estas possibilidades todas, na espiritualidade. Nós, mulheres, não temos estado no comando. Mas acredito que estaremos, um dia. Espero ainda ser viva, nessa altura. Acredito que as coisas estão sempre a melhorar, e isso tem a ver com a consciência. Através da tentativa e do erro, acredito que nos temos tornado mais destemidas e mais propensas a criar o nosso próprio tempo umas com as outras, enquanto mulheres. Mais propensas a criar o nosso próprio vocabulário, a nossa comunicação umas com as outras. Penso que vai acontecer e espero que seja enquanto eu tiver idade para ver os meus netos.

Já temos a Greta Thunberg, uma voz de comando no ativismo ambiental. É mulher e muito jovem…
Eu sei! E é autista! Só o facto de pertencer a essa esfera é muito importante.

No podcast “WTF”, de Marc Maron, disse recentemente que gostaria de sair dos Estados Unidos e que poderia mudar-se para…
Portugal! (risos) É um sonho. Uma coisa que me dá vergonha é que, quando as coisas se complicam, as pessoas falam sempre em ir embora. Quando o nosso antigo Presidente voltou a candidatar-se, [isso aconteceu]. Mas eu pensei: “se formos embora, o que acontece ao nosso país?” Temos de ficar, faz parte da luta. Mas o sonho seria ir embora. Acho que toda a gente gostava de ir para um sítio onde não tivesse dificuldades, porque falava a língua local… mas isso também é estar em negação do mundo à nossa volta, da comunidade onde vivemos. Talvez quando tiver 60 anos.

Tem amigos em Portugal?
Tenho um!

Então ele apresenta-a às outras pessoas…
Isso é verdade. Eu mudei-me para Miami porque a minha melhor amiga do liceu vivia aqui.

Faz 50 anos no próximo dia 21. Qual tem sido a melhor parte da viagem?
Pensar nisso até me faz chorar. Eu só tenho esta voz pequenina… As canções são canções. Não há explicação para a música, exceto que nos emociona e nós precisamos disso. Precisamos de crescimento, a todos os níveis, e de falar com pessoas e fazer com que a nossa pequena voz possa ser ouvida… De todas as pessoas que lerem o teu artigo, pode haver uma que esteja a lutar contra o medo, que tenha problemas de saúde mental ou sofra algum tipo de abuso. De vício ou violência. E alguma coisa que eu diga poderá fazer com que pensem no que estão a sentir. Então, ter 50 anos… nunca pensei chegar aos 21. Lembro-me de fazer 21 anos, e de ter sido muito importante. De ter feito 23 anos, e de ter sido muito importante. De ter feito 27… Achei sempre que estava só a sobreviver até ao momento seguinte. E agora aprendi que não tenho de olhar para o meu passado com dor. Aprendi isto na terapia. Consigo ver a dor, mas não tenho de ir buscá-la. Posso olhar para o que aconteceu e tentar perceber o que motivou a minha reação. Reagir para seguir em frente. Ter 50 anos não é brincadeira! Eu tenho um pressentimento de que serão os melhores anos da minha vida. É nisso que escolho acreditar. Já me diverti muito, claro. Mas sobretudo com as mulheres e os seus corpos, há muita coisa que acontece com a maternidade. Vou escolher tomar as rédeas da minha alegria e do meu caminho.

“Covers”, 13º álbum de Cat Power e terceiro de versões, inclui canções de Nick Cave, Iggy Pop, Billie Holiday, Frank Ocean e Lana Del Rey, entre outros, e já está disponível

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