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A festa de Ana Moura no Coliseu de Lisboa: um (des)fado diferente, um cheirinho a liberdade e muitos braços à sua espera

Ana Moura abriu as portas da “Casa Guilhermina” à multidão que lotou o Coliseu dos Recreios e mostrou-lhe o seu novo fado. Pedro Mafama, Paulo Flores e a pequena Emília ajudaram-na a fazer a festa da diversidade e da liberdade num espetáculo pensado ao pormenor, no qual o passado praticamente não teve lugar

A última vez que vimos Ana Moura subir ao palco do Coliseu de Lisboa, a sua vida era muito diferente. O seu fado também. Na noite de domingo, assistimos ao vivo e a cores à etapa final da metamorfose de uma artista que resolveu pegar na sua paixão pelo fado e expandi-la, não só para abraçar outras sonoridades que lhe correm no sangue como para encontrar (e renovar) o seu público. Convidando uma sala esgotadíssima para dançar, Moura passeou-se livremente pelas canções de “Casa Guilhermina”, o álbum de rutura com o passado que editou recentemente, arriscando-se a fazer uma curtíssima viagem a outros tempos para mostrar que o seu ‘Desfado’ também se transforma. A plateia, entre a qual reinava uma diversidade que não nos recordamos de encontrar em concertos passados, esteve sempre do seu lado, aplaudindo, encorajado e delirando com os momentos especiais de um espetáculo pensado ao pormenor. Ouvimos o fado a cruzar-se com o semba e a quizomba, vimos o canto deixar-se contagiar pela dança, e vice-versa, e assistimos a encontros felizes com dois convidados especiais e à participação de uma convidada especialíssima.

Diversidade e liberdade serão certamente as palavras que melhor definem “Casa Guilhermina”, mas aquilo que transborda das divisões do lar de Ana Moura é uma mescla de sentimentos, por vezes contraditórios, ora puxando à lágrima ora, no instante seguinte, empurrando para a festa. “Vem dançar na roda”, é o desafio que se coloca ainda antes de a fadista entrar em palco, enquanto somos convidados a acompanhar, no ecrã gigante, as imagens em loop das câmaras de vigilância montadas em várias divisões da “Casa Guilhermina” e, também, no Coliseu – porque o palco, como nos parece querer dizer, é uma extensão da sua casa. Quando, 20 minutos depois da hora marcada, a campainha toca e o trinar da guitarra portuguesa da intensa ‘Minha Mãe’ ecoa pela sala, o público já não contém o entusiasmo. Entrando pelo fundo do palco, por entre os adufes empunhados pelos quatro bailarinos que a acompanhariam em diversos momentos, Moura atira-se sem delongas ao malhão lento de ‘Janela Escancarada’, servido numa dança onde tradição e modernidade formam par. A primeira ovação não se fez esperar, e só se prolongou quando, de seguida, o público não se fez rogado na hora de acompanhar a fadista, a plenos pulmões, no refrão irresistível de ‘Andorinhas’.

“Estou particularmente nervosa”, confessa a fadista depois de dar as boas-vindas a um “concerto irrepetível”. “Estes meus últimos anos tiveram alguns momentos de imensa dor, que quis transformar numa outra coisa, em algo que me pudesse trazer alegria. Obviamente que cantar traz-me imensa alegria, mas dançar também e ver as pessoas a dançar as minhas músicas ainda me faz mais feliz”, acrescenta, explicando a razão pela qual na plateia só havia lugares em pé. E segue a dançar por ‘Corridinha’, a canção de “Casa Guilhermina” que melhor fará a ponte com o passado dos álbuns “Desfado” e “Moura”. Outras danças se impuseram, depois de uma ‘Estranha Forma de Vida’ desarranjada por eletrónicas suaves. Pedro Mafama, coprodutor do álbum e seu companheiro de vida, entra em cena para, entre a tragédia e a sensualidade, se entregar à intensidade de ‘Linda Forma de Morrer’ e aos ritmos sedutores de ‘Agarra Em Mim’. E a temperatura sobe, entre um beijar de mão e um entrelaçar de corpos que vale ao casal uma chuva de aplausos e assobios marotos. “Obrigado ao Pedro Mafama por tudo o que trouxe à minha vida”.

Embrenhando-se nas raízes angolanas, Ana Moura segue viagem com ‘Jacarandá’, canção pintada em tons púrpura como homenagem ao amigo Prince. “Ele dizia: ‘Ana, um dia ainda vou ouvir a tua música com um beat’, então fiz esta com um beat de quizomba”, explica, antes de cantar versos como “para mim, estás vivo em cada jacarandá”. E da quizomba de ‘Jacarandá’ passa ao casamento de Amália e Bonga de ‘Calunga’ para, logo de seguida, desarranjar e africanizar ‘Desfado’ numa versão que, entre confusão e entusiasmo, arranca do público uma contundente aprovação. A voz de Conan Osíris irrompe, então, em ‘Colheita’ para abrir caminho até ‘Trigo’, canção minimalista e íntima que contagia uma intensa ‘Nossa Senhora das Dores’, da “madrinha de fado” Maria da Fé, servida numa cama de ferro. “Silêncio para não assustar a Emília”, pede-se no ecrã gigante, com a fadista a reentrar em palco na companhia da filha para uns passinhos de dança tímidos. “Este concerto é muito sobre dançar e a Emília começou a andar há pouco tempo e aprendeu a dançar sem ninguém a ensinar”.

Antes de o segundo convidado especial ser convidado a entrar em palco, Moura apresenta ‘Mázia’, a canção que fez para a sua prima Cláudia. “Foi ao som do Paulo Flores que eu cresci e a canção que vou cantar agora é a peça central deste disco. Foi com ela que ele começou”, explica, “eu e a minha prima Cláudia costumávamos dançar para a avó Guilhermina. Éramos as melhores dançarinas do mundo. Quis fazer um semba de homenagem a esta mulher forte, com quem partilhava a nossa herança angolana. Ela chamava-se Cláudia, mas nós tratávamo-nos por ‘mázia’, diminutivo de ‘primázia’”. Quando Paulo Flores se junta a Moura, sob uma chuva de aplausos, já a plateia dançava sem resistir. “Mais do que chorar quem não está, é importante celebrar a vida”, exclama o popular cantor angolano, antes de seguirem em dueto com ‘Poema do Semba’. Gaspar Varela, que acompanha o espetáculo com a sua guitarra portuguesa, dá o mote para a sequência final do concerto: primeiro ouvimos ‘Classe’, fado escrito por Conan Osíris, depois uma intimista ‘Sozinha Lá Fora’, apresentada bem perto do público, e, no final, o fandango vira um estrondoso ‘Arraial Triste’, com percussão possante e guitarra rasgada.

E seria um “até à próxima, Coliseu” se não houvesse um retornar ao palco, ruidosamente exigido pelo público, para as devidas despedidas. Sozinha, sem acompanhamento instrumental, Ana Moura vai buscar o fado ‘Loucura’ às profundezas naquele que rapidamente se afirma como o momento mais arrepiante do espetáculo, aquele que arranca as tradicionais exclamações ‘Ah, fadista!’ de um público tremendamente respeitador - mesmo quando, depois de atirar beijos para a plateia, se arrisca numa versão de ‘Te Amo’, sucesso do duo Calema. O fim, em festa, faz-se, de novo, ao som de ‘Mázia’, entre as apresentações dos músicos – além de Gaspar Varela, a nova banda de Moura conta com o baixista André Moreira, o guitarrista Rodrigo Correia e o baterista Ariel Rosa – e dos bailarinos, da chamada ao palco de Pedro Mafama e Paulo Flores e dos derradeiros agradecimentos. “Foi só amor, o que aconteceu aqui”, exclama a fadista. Um amor que se expandiu, visivelmente, desde que Moura se deu à liberdade de derrubar os limites que o país lhe impôs quando a transformou numa das fadistas mais populares das últimas décadas. A isso chama-se triunfo, e este espetáculo só veio comprová-lo.

‘Minha Mãe’
‘Janela Escancarada’
‘Andorinhas’
‘Corridinha’
‘Estranha Forma de Vida’
‘Linda Forma de Morrer’ com Pedro Mafama
‘Agarra em Mim’ com Pedro Mafama
‘Antes que Eu Morra’
‘Jacarandá’
‘Calunga’
‘Desfado’
‘Colheita’
‘Trigo’
‘Nossa Senhora das Dores’
‘Birim Birim’
‘Mázia’ com Paulo Flores
‘Poema do Semba’ com Paulo Flores
‘Classe’
‘Sozinha Lá Fora’
‘Arraial Triste’

‘Loucura’
‘Te Amo’
‘Mázia’

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