A última vez que vimos Ana Moura subir ao palco do Coliseu de Lisboa, a sua vida era muito diferente. O seu fado também. Na noite de domingo, assistimos ao vivo e a cores à etapa final da metamorfose de uma artista que resolveu pegar na sua paixão pelo fado e expandi-la, não só para abraçar outras sonoridades que lhe correm no sangue como para encontrar (e renovar) o seu público. Convidando uma sala esgotadíssima para dançar, Moura passeou-se livremente pelas canções de “Casa Guilhermina”, o álbum de rutura com o passado que editou recentemente, arriscando-se a fazer uma curtíssima viagem a outros tempos para mostrar que o seu ‘Desfado’ também se transforma. A plateia, entre a qual reinava uma diversidade que não nos recordamos de encontrar em concertos passados, esteve sempre do seu lado, aplaudindo, encorajado e delirando com os momentos especiais de um espetáculo pensado ao pormenor. Ouvimos o fado a cruzar-se com o semba e a quizomba, vimos o canto deixar-se contagiar pela dança, e vice-versa, e assistimos a encontros felizes com dois convidados especiais e à participação de uma convidada especialíssima.
Diversidade e liberdade serão certamente as palavras que melhor definem “Casa Guilhermina”, mas aquilo que transborda das divisões do lar de Ana Moura é uma mescla de sentimentos, por vezes contraditórios, ora puxando à lágrima ora, no instante seguinte, empurrando para a festa. “Vem dançar na roda”, é o desafio que se coloca ainda antes de a fadista entrar em palco, enquanto somos convidados a acompanhar, no ecrã gigante, as imagens em loop das câmaras de vigilância montadas em várias divisões da “Casa Guilhermina” e, também, no Coliseu – porque o palco, como nos parece querer dizer, é uma extensão da sua casa. Quando, 20 minutos depois da hora marcada, a campainha toca e o trinar da guitarra portuguesa da intensa ‘Minha Mãe’ ecoa pela sala, o público já não contém o entusiasmo. Entrando pelo fundo do palco, por entre os adufes empunhados pelos quatro bailarinos que a acompanhariam em diversos momentos, Moura atira-se sem delongas ao malhão lento de ‘Janela Escancarada’, servido numa dança onde tradição e modernidade formam par. A primeira ovação não se fez esperar, e só se prolongou quando, de seguida, o público não se fez rogado na hora de acompanhar a fadista, a plenos pulmões, no refrão irresistível de ‘Andorinhas’.
“Estou particularmente nervosa”, confessa a fadista depois de dar as boas-vindas a um “concerto irrepetível”. “Estes meus últimos anos tiveram alguns momentos de imensa dor, que quis transformar numa outra coisa, em algo que me pudesse trazer alegria. Obviamente que cantar traz-me imensa alegria, mas dançar também e ver as pessoas a dançar as minhas músicas ainda me faz mais feliz”, acrescenta, explicando a razão pela qual na plateia só havia lugares em pé. E segue a dançar por ‘Corridinha’, a canção de “Casa Guilhermina” que melhor fará a ponte com o passado dos álbuns “Desfado” e “Moura”. Outras danças se impuseram, depois de uma ‘Estranha Forma de Vida’ desarranjada por eletrónicas suaves. Pedro Mafama, coprodutor do álbum e seu companheiro de vida, entra em cena para, entre a tragédia e a sensualidade, se entregar à intensidade de ‘Linda Forma de Morrer’ e aos ritmos sedutores de ‘Agarra Em Mim’. E a temperatura sobe, entre um beijar de mão e um entrelaçar de corpos que vale ao casal uma chuva de aplausos e assobios marotos. “Obrigado ao Pedro Mafama por tudo o que trouxe à minha vida”.
Embrenhando-se nas raízes angolanas, Ana Moura segue viagem com ‘Jacarandá’, canção pintada em tons púrpura como homenagem ao amigo Prince. “Ele dizia: ‘Ana, um dia ainda vou ouvir a tua música com um beat’, então fiz esta com um beat de quizomba”, explica, antes de cantar versos como “para mim, estás vivo em cada jacarandá”. E da quizomba de ‘Jacarandá’ passa ao casamento de Amália e Bonga de ‘Calunga’ para, logo de seguida, desarranjar e africanizar ‘Desfado’ numa versão que, entre confusão e entusiasmo, arranca do público uma contundente aprovação. A voz de Conan Osíris irrompe, então, em ‘Colheita’ para abrir caminho até ‘Trigo’, canção minimalista e íntima que contagia uma intensa ‘Nossa Senhora das Dores’, da “madrinha de fado” Maria da Fé, servida numa cama de ferro. “Silêncio para não assustar a Emília”, pede-se no ecrã gigante, com a fadista a reentrar em palco na companhia da filha para uns passinhos de dança tímidos. “Este concerto é muito sobre dançar e a Emília começou a andar há pouco tempo e aprendeu a dançar sem ninguém a ensinar”.
Antes de o segundo convidado especial ser convidado a entrar em palco, Moura apresenta ‘Mázia’, a canção que fez para a sua prima Cláudia. “Foi ao som do Paulo Flores que eu cresci e a canção que vou cantar agora é a peça central deste disco. Foi com ela que ele começou”, explica, “eu e a minha prima Cláudia costumávamos dançar para a avó Guilhermina. Éramos as melhores dançarinas do mundo. Quis fazer um semba de homenagem a esta mulher forte, com quem partilhava a nossa herança angolana. Ela chamava-se Cláudia, mas nós tratávamo-nos por ‘mázia’, diminutivo de ‘primázia’”. Quando Paulo Flores se junta a Moura, sob uma chuva de aplausos, já a plateia dançava sem resistir. “Mais do que chorar quem não está, é importante celebrar a vida”, exclama o popular cantor angolano, antes de seguirem em dueto com ‘Poema do Semba’. Gaspar Varela, que acompanha o espetáculo com a sua guitarra portuguesa, dá o mote para a sequência final do concerto: primeiro ouvimos ‘Classe’, fado escrito por Conan Osíris, depois uma intimista ‘Sozinha Lá Fora’, apresentada bem perto do público, e, no final, o fandango vira um estrondoso ‘Arraial Triste’, com percussão possante e guitarra rasgada.
E seria um “até à próxima, Coliseu” se não houvesse um retornar ao palco, ruidosamente exigido pelo público, para as devidas despedidas. Sozinha, sem acompanhamento instrumental, Ana Moura vai buscar o fado ‘Loucura’ às profundezas naquele que rapidamente se afirma como o momento mais arrepiante do espetáculo, aquele que arranca as tradicionais exclamações ‘Ah, fadista!’ de um público tremendamente respeitador - mesmo quando, depois de atirar beijos para a plateia, se arrisca numa versão de ‘Te Amo’, sucesso do duo Calema. O fim, em festa, faz-se, de novo, ao som de ‘Mázia’, entre as apresentações dos músicos – além de Gaspar Varela, a nova banda de Moura conta com o baixista André Moreira, o guitarrista Rodrigo Correia e o baterista Ariel Rosa – e dos bailarinos, da chamada ao palco de Pedro Mafama e Paulo Flores e dos derradeiros agradecimentos. “Foi só amor, o que aconteceu aqui”, exclama a fadista. Um amor que se expandiu, visivelmente, desde que Moura se deu à liberdade de derrubar os limites que o país lhe impôs quando a transformou numa das fadistas mais populares das últimas décadas. A isso chama-se triunfo, e este espetáculo só veio comprová-lo.
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