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Luca Argel conta-nos a história de Sabina, a mulher negra que vendia laranjas: uma fábula intemporal, um disco (e BD) irresistível

19 março 2023 15:22

Lia Pereira

Lia Pereira

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Jornalista

Brasileiro radicado em Portugal, apresenta “Sabina” no B.leza, em Lisboa, quinta-feira, e no Novo Ático do Coliseu do Porto, dia 26

vera marmelo

Pouco antes da queda da monarquia no Brasil, uma vendedora de rua viu-se no meio de um movimento revelador do espírito do tempo. Luca Argel, cantor e compositor brasileiro radicado há vários anos no Porto, conta a sua história

19 março 2023 15:22

Lia Pereira

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Jornalista

Nas páginas da história, é comum encontrar personagens cuja trajetória, amiúde acidental, é reveladora do espírito do tempo em que viveram — e cujas desventuras acabam por ter repercussões maiores do que alguma vez poderiam imaginar. Natural do Rio de Janeiro, e a viver em Portugal há uma década, Luca Argel tem-se deparado, nas suas pesquisas sobre a história do samba, com essas figuras imortalizadas, como se ouve no seu novo álbum, “pela cultura das ruas”. Depois de, em “Samba de Guerrilha” (2021), se debruçar sobre a história política do samba e o papel dos seus protagonistas na luta contra a escravatura, o racismo e a ditadura militar, em “Sabina” tira o retrato a uma quitandeira, ou vendedora de rua, que viveu no Rio de Janeiro no final do século XIX. Num misto de mito e facto, o que conhecemos foi suficientemente sumarento para inspirar um conjunto de canções. Em 1889, ano da queda da monarquia do Brasil, Sabina — mulher negra que vendia laranjas na rua — viu-se no meio de um episódio que mediu o pulso às tensões latentes. Tudo aconteceu, como se lê na banda desenhada de Allan Matias que acompanha o disco, “pouco antes da queda de D. Pedro II, mais precisamente em julho”, quando um grupo de estudantes de Medicina, “clientes de Sabina e republicanos até aos ossos”, usaram as suas laranjas para alvejar o visconde de Ouro Preto, “figurão do império” que passava na rua. Chamadas as autoridades, foi Sabina quem foi punida, perdendo o ganha-pão. Num movimento solidário, os estudantes — brancos, privilegiados — pediram justiça para Sabina, conseguindo-a, com a demissão do subdelegado que a punira e o regresso da quitandeira à sua banca.

A simbologia do episódio não passou despercebida a Luca Argel, que desde 2012 vive no Porto: “Uma das coisas fascinantes da história da Sabina é que é uma alegoria, como as fábulas. Tem várias lições e conclusões que podemos tirar dali e aplicar a situações do presente. E que mostram como o processo histórico não termina no momento em que uma situação deixa de ser legal. No caso da escravidão, legalmente foi abolida e o processo histórico que permitiu que ela existisse também se encerrou. Mas persiste muito tempo na sociedade.”