‘Lisboa Mulata’, Dead Combo (2011)
Lisboa, novembro de 2011. Anthony Bourdain sentou-se com Pedro Gonçalves e Tó Trips no bar ‘Sol e Pesca’, no Cais do Sodré, à volta de conservas, pão, imperiais e música. Daí a cinco meses, o seu “No Reservations” seria emitido e os Dead Combo passaram a despertar a atenção internacional. Bourdain quis conhecer a capital a partir da comida e passou a dar a conhecer Portugal através da música. Interessou-lhe saber histórias de Lisboa – da moderna, que também ajudava a criar (por isso ali estava), e da antiga, marcada por décadas de ditadura (ouvidas de António Lobo Antunes) e tradições. Queria, por isso, uma sonoridade que agregasse uma Lisboa cosmopolita mas arreigada a um passado longo. Anthony Bourdain queria os Dead Combo mesmo antes de os conhecer. Precisava daquela guitarra e daquele contrabaixo para retratar uma cidade que atravessara (e atravessava) continentes – com o fado e a sofisticação na algibeira. Por esse acaso, por esse fado, em final de abril de 2012, após “No Reservations” ser emitido, três dos álbuns dos Dead Combo posicionaram-se no top 10 do iTunes. Uau! Os Dead Combo, um delírio elétrico, tocando um fado-blues, fazendo música dificilmente catalogável mas typical o suficiente para afirmar um género em si – e sobretudo sem modelos explícitos no seu ADN – a espraiar o fado pelo Oeste.
A canção-guia desta deambulação de Bourdain é ‘Lisboa Mulata’, uma canção que reclama tanto Lisboa como África ou o Brasil. ‘Lisboa Mulata’ reclama o aqui e o longe. É uma canção que descodifica a sonoridade dos pregões, dos marialvas, dos fadistas, dos marginais, da noite enevoada, das cortesãs, das plumas, do bas-fond, das madrugadas entorpecidas – tudo isto iluminado por neons. ‘Lisboa Mulata’ cartografa a paisagem sonora de uma nova Lisboa – feita de muito passado e com futuro já delineado. Os Dead Combo conseguiram nesta canção (não só nesta canção, mas sobretudo nesta canção) contar uma história de fio a pavio – ainda que sem palavras, representando a essência daquilo que é ser português (em sintonia com o que é ser português estando em Lisboa). A Lisboa dos Dead Combo é de facto uma Lisboa mestiça, uma Lisboa falada em muitas línguas e confluências culturais. A Lisboa dos Dead Combo é uma Lisboa aculturada – que germina incongruências e subversões. É uma Lisboa que cruza mares e cruza terras. É uma Lisboa de outrora e de além, mas que ainda palmilha a sua nova identidade; conhece bem mais o seu passado e o seu futuro do que o seu presente.
‘Lisboa Mulata’, como um arquétipo dos Dead Combo, é uma epopeia musical. Traduz a sonoridade cinematográfica de que é feito Pedro Gonçalves e Tó Trips; se preferirmos, o gangster e o cangalheiro – personagens vadias saídas de um livro de BD – que convocam o fado e os blues em cada acorde em que se encontram, como se Alfredo Marceneiro, John Lee Hooker, a Severa e Ennio Morricone se encontrassem num bar (de caubóis).
O projeto nasceu com Carlos Paredes; melhor: com a música de Carlos Paredes. Tó Trips assobiava em garoto as melodias do guitarrista que tinha em ‘Verdes Anos’ todo um país. Assobiava ‘Verdes Anos’ com um compasso mais lento – e ‘Verdes Anos’ com um compasso mais lento pode soar a western (como em outros compassos pode soar a tango ou a bolero). Tó Trips haveria, anos mais tarde, de desafiar Pedro Gonçalves a comporem uma Lisboa ficcionada, imaginária, inspirada em Carlos Paredes, com cenário e adereços. Haveria de desafiar Pedro Gonçalves a comporem, enfim, música com Lisboa dentro. Os Dead Combo compunham música com Lisboa dentro e com as memórias que Lisboa trazia.
Os Dead Combo formaram-se porque Pedro Gonçalves não tinha carro; Tó Trips, sem o saber e conhecendo mal Pedro Gonçalves, pediu-lhe boleia depois de um concerto. A boleia a pé serviu para maquinar os Dead Combo, numa época (2003) em que a música portuguesa se reinventava, agregando as linguagens tradicionais e de vanguarda. Os Dead Combo foram os agregadores dessa agregação, os fazedores da banda sonora criativa que Lisboa, num sussurro, lhes pediu. Os Dead Combo, embora sem essa intenção, convenceu-nos de que não bastava acostumarmo-nos a ser portugueses; era preciso termos também orgulho do que por cá se concebe.
Há elementos que se passam a moldar ao nosso cotidiano como se sempre tivessem sido familiares. Houve um tempo sem esses elementos; em que o presente era mesmo passado. Houve um tempo sem este “Bunch of Meninos” (álbum de 2014). Sem estas personagens soturnas, fantasmagóricas, de guitarra e contrabaixo às costas, com narrativas sonoras por contar. Com uma biografia musical indefinida, mas definidora de um destino sonoro concreto. Existem. Existiram. Fizeram parte da matéria em que Lisboa se substancia ainda hoje. Uma matéria moldada a diferença, moldada a distante – que os Dead Combo ajudaram a encurtar. Se fossem mais portugueses, teriam com certeza escolhido cantar palavras em vez de as dispensarem. Como são personagens de tempo algum, preferiram criar ambiências afetivas apenas com um contrabaixo e uma guitarra elétrica – tendo conseguindo, ainda assim, alumiar modernidade e estabelecer uma nova identidade musical. Com a morte de Pedro Gonçalves, Tó Trips despiu a personagem de cangalheiro (que só fazia sentido ao lado de um gangster), mas os Dead Combo continuam a povoar a cidade. A pairar pela cidade. E já que se fala de ilusão: de cada vez que um americano comesse uma bifana ou um prego (tal como Bourdain fez em Lisboa), fosse em que latitude fosse, haveria de ouvir-se os acordes de ‘Lisboa Mulata’.
Ouvir também: ‘Inquietação’ (2012). A convite do Canal Q, juntaram-se os Dead Combo, Camané e a letra de José Mário Branco (para a sua canção original de 1982). Com linguagens tão distintas entre si, esta versão consegue não desvirtuar cada uma das suas singularidades.
101 canções que marcaram Portugal é uma rubrica que visa homenagear as cantigas, os compositores e os intérpretes que marcaram a história da música portuguesa em Portugal. Sem ordem cronológica rígida, são um retrato pessoal (com foco na petite histoire) do autor. Mais do que uma contextualização e de um inventário de factos conhecidos, é sobretudo uma associação de estórias e de muitos episódios não registados. São histórias com estórias para além da música. Às vezes o lado errado das canções. Sobretudo o lado errado das canções.
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