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Agir ao vivo no Teatro São Luiz: um artista no tempo do PREC (isto é, processo de reinvenção em curso)

Há um novo Agir ou “finalmente um concerto sério”, como diria sua mãe. Acompanhado por sopros, cordas e quatro convidadas especiais, o músico lisboeta não perdeu o bom humor e provou que nem tudo o que parece é. A crónica de uma noite ‘clássica’ no Teatro São Luiz, em Lisboa

Paulo André Cecílio (texto), Rita Carmo (fotos)

Se em 1892 tivessem dito ao ator Guilherme da Silveira, grande impulsionador do Teatro São Luiz, que um dia esta sala serviria de palco para um rapaz tatuado, de t-shirt preta e calças aos quadrados, mais conhecido por êxitos trap pop como ‘Parte-me o Pescoço’, provavelmente a pessoa ou pessoas em questão teriam sido brindadas com palavras como “afronta”, “desgraça”, “sacrilégio” ou “declínio da civilização ocidental”. No entanto, a Terra move-se, as modas e os costumes evoluem, o que outrora era impensável é hoje normalíssimo. E ainda bem, porque ao longo de pouco mais de uma hora Agir provou que este palco pode, e deve, ser também seu. O próprio brincou com isso, perto do final do espetáculo: “a minha mãe deve estar a pensar: finalmente um concerto a sério, numa sala a sério”…

Não querendo entrar por esses caminhos que, na sua voz, tinham aquele toque de fina e bem-humorada autodepreciação, este foi de facto um concerto bem mais sério do que aquele que se imaginaria, sobretudo se não se conhecer “Cantar Carneiros”, álbum que Agir lançou em setembro deste ano. Para trás ficou o autotune e a batida afro-americana, no presente estão o piano, a bateria, os sopros, as cordas e a voz, mais canto que rap, mais tradicional que modernaço. Mesmo que ao longo da noite lhe tenham chamado menino, Agir é já um homem feito. Sabe o que quer da sua música e sabe como a transpor para um palco como este, mais intimista, menos dado às loucuras habituais dos festivais de verão.

Bárbara Tinoco, que cantou com ele ‘Morada’, bem o disse: “é uma das pessoas que mais se reinventou ao longo da sua carreira”. A palavra “reinventar” é aqui bem aplicada. Sob um carneiro néon, da autoria de Bordalo II, Agir entra em palco ladeado por uma panóplia de músicos, mão no bolso que tinha tanto de desafio como de nervosismo, começando com ‘Olhos da Alma’. “Este concerto ‘teve enguiçado, não é?”, brincaria logo a seguir, referindo-se ao adiamento devido a problemas de saúde - nomeadamente, duas cólicas renais, sendo que “as pedras” ali estavam pousadas em palco.

Muito comunicativo entre canções, foi apresentando os temas que compõem “Cantar Carneiros” sem a ordem do alinhamento original, mas com toda a força que acarretam. ’As Coisas Estão Bem Como Estão', que envolveu uma história sobre o gato que sempre desejou ter em casa, começou com um arranjo orquestral, meio chanson, ajudada pelo saltitar de uma guitarra acústica. ‘Tem Mais’ contou com Tainá, a primeira convidada da noite, que lhe conferiu uma boa e deliciosa dose de algodão-doce (a culpa é daquela voz).

Outras três se seguiriam, as mesmas que surgem no álbum: a supracitada Bárbara Tinoco, que terminou com a cabeça no ombro de Agir assim que é entoado o último verso da cantiga (Podes vir pousar em mim…); Milhanas, que com ele cantou ‘Constelações’, a sua voz criando tensão triste antes da pausa; e Isabel Ruth, que acrescentou a “Cantar Carneiros” uma composição de sua autoria ("não foi escrita por mim e é por isso que é efetivamente boa", gracejou Agir), ‘Madalena’, numa atuação “duplamente simbólica” - foi no São Luiz que se estreou um dos filmes que mais marcaram a carreira da atriz, a icónica obra que dá pelo nome de “Os Verdes Anos”, de 1963.

Antes do encore, ainda se escutaria ‘Prescrever’, com o público acompanhando com palmas e cantando alto o refrão. ‘Uma Flor de Verde Pinho’, poema de Manuel Alegre que é já standard da canção portuguesa na voz de Carlos do Carmo, e ‘Uma Cantiga de Amor', do pai Paulo de Carvalho (“das menos conhecidas dele mas a que mais gosto”) dariam corpo ao triunfo de Agir numa sala que, nesta nova faceta da sua carreira, parece ter sido talhada só para ele. No final, aplaudiu-se de pé. Nisso até Guilherme da Silveira participaria.

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