101 canções que marcaram Portugal é uma rubrica que visa homenagear as cantigas, os compositores e os intérpretes que marcaram a história da música portuguesa em Portugal. Sem ordem cronológica rígida, são um retrato pessoal (com foco na petite histoire) do autor. Mais do que uma contextualização e de um inventário de factos conhecidos, é sobretudo uma associação de estórias e de muitos episódios não registados. São histórias com estórias para além da música. Às vezes o lado errado das canções. Sobretudo o lado errado das canções.
‘Por Quem Não Esqueci’, Sétima Legião (1989)
1982: António Variações preparava-se para gravar o seu primeiro single e leu uma crónica musical de Miguel Esteves Cardoso - em que este construía uma analogia entre o fado e a música dos Joy Division. António Variações queria precisamente que o ‘seu’ ‘Povo Que Lavas no Rio’ soasse a Joy Division e a fado e mostrou a crónica de M.E.C. a Ricardo Camacho – como se o artigo servisse de prova contundente para executar a sua excentricidade. A canção de Pedro Homem de Mello e Joaquim Campos, habituada a vestir-se de fado, teria, pela primeira vez, um outfit Madchester.
Ricardo Camacho fez a vontade a António Variações, mas não haveria de fazer muitas cedências à sua banda, nascida nesse ano de 1982 (ainda sem ele). Camacho colaborava com Luís Filipe Barros no ‘Rock em Stock’, na Rádio Comercial, que era a grande montra, juntamente com o ‘Som da Frente’, de António Sérgio, da vanguarda musical servida ao grande público.
Vivia-se a aventura de uma música nova, de um novo rock, de novas linguagens que evitassem o fado, o nacional-cançonetismo, as músicas de intervenção e mesmo o rock interventivo e o jazz psicadélico da década anterior. Em 1982, já tinha havido, ainda assim, Cavalos de Corrida, Chicletes e Chicos Fininhos em demasia. Faltava ainda novas abordagens melódicas – música a soar a novo cá dentro com influências do melhor que se fazia ‘lá fora’ (até onde era possível recolher influências, numa época com pouco acesso, que não o físico, a novidades). Algumas dessas influências estavam em Manchester – trazidas pela pujança de Miguel Esteves Cardoso, que convivia com Tony Wilson, fundador da Factory Records, que editava o melhor que se fazia naquela ambiência sombria e melancólica (Joy Division, A Certain Ratio ou Happy Mondays).
Era tempo, pois, de transpor o conceito (de editora independente de música) da Factory para Portugal. Queriam ventilar uma nova linguagem, tomar o álbum “Closer” dos Joy Division como referência e servir elegância musical a um Portugal devotado ao rock padronizado e às vozes guturais. Quase todos os artistas portugueses editados pela Fundação Atlântica soavam, aliás, a Manchester, a Joy Division, a “Closer”: Xutos e Pontapés, Delfins, Manuela Moura Guedes e Sétima Legião. A Fundação Atlântica foi assim uma quimera breve de excentricidade musical, um capricho de amigos que tinham ainda muito que prestar serviço a outras áreas que não apenas a uma editora de música depurada e requintada.
Serviu, em todo o caso, para unir Ricardo Camacho à Sétima Legião, ajudando a conceber um dos conceitos mais elegantes da música produzida em Portugal. O primeiro single e primeiro álbum da Sétima Legião foram editados pela Fundação Atlântica, mas o sucesso só viria três anos mais tarde, em 1987, com o álbum “Mar D’Outubro”, já pela EMI e já com a formação definitiva.
Quiseram estar sempre à frente do som mainstream em voga – e mesmo assim com êxito de vendas. Aguardava-se, por isso, com expectativa o álbum subsequente a “Mar D’Outubro” – que novas linguagens traria e se essas novas linguagens não seriam herméticas, tal como o primeiro álbum editado pela Fundação Atlântica. Mas não: “De Um Tempo Ausente” era um álbum de canções, de grandes canções. Que firmaram a Sétima Legião como uma banda transversal – nas rádios, nas vendas e na crítica. Era um álbum mais burilado do que o anterior. Mais maduro, mas também mais desirmanado – querendo agregar as conceções musicais de todos os membros da banda, por vezes com uma linguagem mais barroca e menos cristalina. Ainda assim, o single ‘Por Quem Não Esqueci’ alavancou as outras canções.
“De Um Tempo Ausente” era um álbum que se demarcava da música ouvida então – incorporando tradições rurais e históricas, convocando sonoridades étnicas nas canções. Um elemento distintivo era o acordeão de Gabriel Gomes e a gaita de foles de Paulo Marinho – que serviram de influência para a música pop com raiz tradicional que se faria a partir da Sétima Legião. Ao contrário de António Variações, nenhum dos elementos da Sétima Legião era exibicionista, nem mesmo o vocalista Pedro Oliveira. A Sétima Legião era um complexo de virtudes. As letras de Francisco Menezes oscilavam entre o apelo a referências do passado (menos provocatórias do que os Heróis do Mar) e a episódios do quotidiano afetivo – como é o caso da canção ‘Por Quem Não Esqueci’. A banda, essa, manteve sempre uma matriz de modernidade e de vanguarda. Nunca fez música explícita, cerebral. Fazia música com os sentidos e fazia-no-los despertar.
A Sétima Legião fazia diferente. Ao contrário da pop produzida então, a Sétima Legião geria com elegância os silêncios. Arrastava as notas, permitindo a quem a ouvia degustar a sua essência. A Sétima Legião soava bem. Faz-nos, ainda hoje, vibrar como cordas. No início de carreira da Sétima Legião, Luís Filipe Barros, tendo-os ouvido tocar no Rock Rendez-Vous, disse a Ricardo Camacho: ‘Tocam mal como o caraças, mas soam bem como tudo’. Aprimoraram a sua técnica, mas nunca deixaram de soar bem.
‘Por Quem Não Esqueci’ é uma canção madura, composta a meio da sua carreira. É uma canção de amor – ainda assim tão diferente de tantas outras. É um dos símbolos maiores de uma banda com história longa – que estava, então, a influenciar a música que se fazia e que, sem o terem previsto, serviria de modelo para o melhor que a música portuguesa fez a partir de então.
Por sinais perdidos
Espero em vão
Por tempos antigos
Por uma canção
Ouvir também: ‘Porto Santo’ (1989). Uma das mais belas canções da Sétima Legião. Gerindo musicalmente a saudade, poderia ser a história de um marinheiro que reencontra a sua amada nesta ilha da Madeira. Terá sido também um exercício melancólico para o produtor Ricardo Camacho, recordando as suas origens na ilha.
Assine e junte-se ao novo fórum de comentários
Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes