101 canções que marcaram Portugal é uma rubrica que visa homenagear as cantigas, os compositores e os intérpretes que marcaram a história da música portuguesa em Portugal. Sem ordem cronológica rígida, são um retrato pessoal (com foco na petite histoire) do autor. Mais do que uma contextualização e de um inventário de factos conhecidos, é sobretudo uma associação de estórias e de muitos episódios não registados. São histórias com estórias para além da música. Às vezes o lado errado das canções. Sobretudo o lado errado das canções.
‘Maria Albertina’, Humanos (2004)
‘Ver o passado com os meus olhos / É filme que gosto de ver / É um desfilar de sonhos / Que me fazem esquecer’ é um dos versos da canção reflexiva ‘António’, que nunca foi gravada – nem pelo próprio António nem pelos Humanos. Tendo tido acesso a este registo autobiográfico de António Variações, nunca conseguiram acertar o arranjo certo (ou pelo menos consensual) e a canção acabou por ficar de fora do (único) álbum que os Humanos gravaram. Apesar disso, era a canção que abria os espetáculos ao vivo, numa atmosfera de remissão para este autorretrato do criador que recriavam. Outra das canções que esteve para ficar de fora foi precisamente ‘Maria Albertina’, o seu maior êxito e grande single desse ano. A letra é inconsequente, a música simplista – mas os membros dos Humanos, especialmente Camané, tiveram a intuição que aquela canção inconsequente e simplista poderia ser trabalhada e tornar-se popular.
“Popular”: adjetivo que qualifica certos nomes, especialmente António Variações, e que expressa a ação de agradar ao povo, de onde provém.
António Variações era popular. Os Humanos apropriaram-se da condição popular de António, embrenharam-se nela, até a absorverem como sua. Só assim seria possível criar (e não recriar) António Variações. Os Humanos criaram Variações. Criaram música a partir de Variações. Não se limitaram a arranjar, a compor, a sofisticar as suas maquetes rudimentares – ensaiadas na casa de banho do quarto que habitava em Sapadores com o irmão. António Variações tinha vizinhança com a música, apesar de não conhecer a sua intimidade, os seus códigos. Só a sabia vivenciar através da sua voz acompanhada das suas palmas, de um lápis a servir de baquete ou de uma caixa de ritmos.
Em 1983, foram os GNR quem descodificaram a complexidade de Variações e a transpuseram para música. Em 1984, os Heróis do Mar. Em 2004, os Humanos – vinte anos depois de António Variações ter morrido. Já sem ele em estúdio a guiar os músicos para um trilho musical que existia, até ali, apenas na sua essência emocional. A história dos Humanos é feita de acasos e de escolhas racionais; afinal, não havia uma segunda possibilidade para se materializar António Variações, para criar António Variações. Os Humanos tinham tudo para correr bem, tinham de correr bem e correram bem.
Jaime Ribeiro, irmão de Variações, entregara algumas cassetes a David Ferreira, responsável pela EMI. Essas cassetes ficaram esquecidas alguns anos até que foram descobertas. Mais do que descobertas, tinham de ser reveladas. Por uma big-band - com músicos, vozes e tecnologia de excelência. A materializar a voz ecoada de Variações numa casa de banho registada num gravador Blaukpunt. Não eram ainda canções; eram esboços despidos de melodia. Nasceram os Humanos – com músicos dos Clã, Camané, David Fonseca e o prodigioso Nuno Rafael. Havia então que criar. Para criar, havia que selar cumplicidades musicais. Agregar trajetos musicais distintos e fazê-los confluir num objetivo comum. Fecharam-se assim numa casa isolada na Baixa da Banheira e aí nasceu a música dos Humanos – que são aquelas músicas de Variações – com cavaquinhos, campaniças, adufos, bombos e pandeiretas, mas engalanadas de pop elegante. Para criarem, abstraíram-se de António, passando a apoderar-se do que este criara.
A maioria das letras das canções são, com exceção do single ‘Maria Albertina’, uma exibição de aforismos das experiências pessoais de António Variações. Todas parecem ter sido compostas para cada uma das três vozes que compõem os Humanos – Manuela Azevedo, Camané e David Fonseca – e as canções compostas do nada pelos músicos que compõem a banda. Todavia, como se tivessem outra camada de leitura, poderiam ser canções gravadas por António Variações e recriadas pelos Humanos. Em todo o caso, o sucesso foi retumbante – especialmente ‘Maria Albertina’, na voz de Camané. Uma canção vigorosa, com um arranjo complexo e cuidado, a fazer coexistir uma sonoridade anos 80 e outra moderna.
Durante meses, foi frequente nas rádios. O álbum homónimo vendeu 40 mil cópias. Os Humanos passaram a ser aclamados, como se o público os dissociasse do seu passado mediático. Portugal passou a ter mais variações na voz. Seguiram-se concertos – em que tocaram não só as doze músicas do álbum como outras de António Variações, dos GNR, dos Titãs, de John Lennon ou dos Sparks; nunca cantaram canções dos projetos originais dos integrantes dos Humanos e nunca o público exigiu canções dos Humanos quando não estavam a tocar enquanto Humanos.
Às 22h05 do dia 6 de Agosto de 2005, os Humanos subiram ao palco TMN do Festival Sudoeste, na Zambujeira do Mar. Camané abriu e fechou a atuação – com ‘António’ e ‘Maria Albertina’. Pelo meio, um concerto eletrizante, a discorrer muito do muito bom que António Variações tinha gravado e não tinha gravado. Seria o seu último concerto. Só atuaram quatro vezes. Chegou. Os Humanos não foram um conjunto de músicos que se uniu para conceber um conceito musical. Os Humanos reuniram-se para registar os esquissos de um criador. Os Humanos cunharam a expressão mais íntima de uma figura incomum. Ter-lhes-á sido difícil perpetuar um registo inacabado de António Variações, um homem que detinha cinco sentidos, mas que se cingiam, nas palavras de David Mourão-Ferreira (não a propósito de Variações), a dois pares e meio de asas. A música portuguesa está-lhes grata. Foi feliz a construção desta história. Teve um fim. Subsistirá como uma memória que, pelo talento dos Humanos, poderemos sempre revisitar.
Esse teu nome eu sei que não é um espanto
mas é cá da terra e tem tem muito encanto.
Maria Albertina como foste nessa
de chamar Vanessa à tua menina
Ouvir também: ‘A culpa é da vontade’ (2004). Pelos arranjos de Nuno Rafael, pela ondulação que Manuela Azevedo imprime, pela letra introspetiva, será porventura a canção em que mais nitidamente se invoca António Variações.
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