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Franz Ferdinand no Campo Pequeno: 20 anos depois, Lisboa dançou com a paixão dos jovens amantes

Hora e meia de suor e glória no reencontro dos Franz Ferdinand com os seus fãs portugueses. Num alinhamento repleto de êxitos, o vocalista Alex Kapranos foi mestre na gestão da energia do público, que celebrou com fervor e devoção

Franz Ferdinand no Campo Pequeno: 20 anos depois, Lisboa dançou com a paixão dos jovens amantes

Lia Pereira

Jornalista

Franz Ferdinand no Campo Pequeno: 20 anos depois, Lisboa dançou com a paixão dos jovens amantes

Rita Carmo

Fotojornalista

Com pontualidade escocesa, foi exatamente às 21h30 que os Franz Ferdinand projetaram as suas silhuetas elegantes na cortina branca que tapava o palco do Campo Pequeno, muito bem composto nesta chuvosa noite de sábado. Segundos depois, o véu caía para, com efeito teatral, revelar a camisa azul de Alex Kapranos - a par do baixista Bob Hardy, o único membro de raiz da banda que há 20 anos partia à conquista do mundo com um primeiro álbum repleto de petardos de um rock glamouroso e dançante. Na altura, Kapranos já tinha gasto algumas vidas - além de várias aventuras musicais de pouca notoriedade, trabalhara como chef, motorista ou soldador - e deu por si a encontrar a fama com a madura idade de 30 anos.

Quando assoma em palco, invariavelmente esguio e garboso, na plateia ouvem-se gritos como se estivéssemos em 2002 - ou em 2004, ano em que os Franz Ferdinand tocaram pela primeira vez em Portugal, mais precisamente no festival Sudoeste. Desde então, já cá estiveram uma dúzia de vezes, a última das quais em 2019, no North Music Festival, no Porto. Ainda assim, Mr. Kapranos, um britânico de ascendência grega e aluno da escola de sensualidade andrógina de David Bowie via Brett “Suede” Anderson, garante que este regresso a Portugal já tardava, para delírio de uma plateia que, ao longo da hora e meia que se seguirá, não vai parar de dançar com fervor e devoção.

Em 2022, e após vários abandonos, a formação dos Franz Ferdinand está “remendada” com os talentosos Dino Barbot, na guitarra; Julian Corrie, que Kapranos apresenta como “o homem que toca tudo” e que esta noite trata das teclas e da guitarra, e Audrey Tait, a dona da bateria desde a saída de Paul Thomson, no ano passado. Ao cabo de duas décadas no ativo, a banda, que tem cinco álbuns e um best of no currículo, até pode estar numa curva descendente no que toca à capacidade de furar a ‘rede’ dos topes (do seu mais recente lonag-duração, “Always Ascending”, de 2018, só uma canção - o tema-título - teve direito a figurar no alinhamento do concerto). Mas os êxitos do passado, dirigidos não só à cabeça, como sugere o título da compilação deste ano, “Hits To The Head”, como às ancas, estão todos aqui, gostosos e desfrutáveis, prontos para serem celebrados por uma plateia sôfrega de festa. E, quando assim é, “it's easy now", como se canta em ‘The Dark of the Matinée’, que com estrondo abre a soirée.

Ainda que, em palco, o quinteto se mostre coeso, e que todos os músicos tenham direito a ter o seu nome escrito nos amplificadores, é sobre Alex Kapranos que todas as atenções recaem. E o recém-cinquentão (completou meio século de vida no passado mês de março) não defrauda ninguém, mostrando mestria na forma como gere o espetáculo e a energia do público. Nos momentos em que o entusiasmo ameaça esmorecer, mesmo que ligeiramente, ele desfila pela passarela que irrompe pela plateia, agarra a mão dos fãs, salta para locais mais altaneiros onde aprecia os ‘estragos' feitos. É um trabalho aparentemente festivo e ligeiro, mas a verdade é que há muita minúcia na forma como o frontman destes sobreviventes do indie dos anos 00 salta entre tensão e libertação, sempre com peso e medida.

Num alinhamento que, à saída, alguns fãs lamentavam ter sido demasiado curto, registaram-se numerosas erupções de um arrebatamento quase juvenil, e como tal impressionante. É impossível não sorrir perante o êxtase coletivo desencadeado por canções como ‘No You Girls’ (do terceiro álbum do grupo, “Tonight: Franz Ferdinand", de 2009); a mais atmosférica Walk Away’ (durante a qual Kapranos teve de trocar de guitarra, brincando com o facto e perguntando aos espectadores se a mesma ficava bem com o azulão da sua camisa) ou ‘Do You Want To', do segundo ‘capítulo’ “You Could Have It So Much Better”, de 2005. Nesta última, o mantra de “lucky lucky, you´re so lucky” é repetido pelo Campo Pequeno “ao expoente da loucura” (como diria Vítor Espadinha, via Manel Cruz), aquecendo as brasas para a dupla diabólica que se seguiria: ambas do primeiro álbum, ‘Michael’ e ‘Darts of Pleasure’ acenderam rastilhos de loucura na plateia. Se na primeira o riff corridinho desliza lindamente sobre a letra provocatória ("Beautiful boys on a beautiful dance floor/Michael you're dancing like a beautiful dance whore"), a segunda inclui um exemplo raro, na música pop, de uso sexy - e tonto - da língua alemã, papagueando algo como “chamo-me Super Fantástico, bebo champanhe com salmão” (avisámos que era tonto).

Possivelmente o êxito maior da banda, ‘Take Me Out’ foi outro caso de gestão exemplar: prolongada até aos nervos começarem a doer, a introdução da canção de 2002 acabou por desaguar numa arrepiante comunhão total no Campo Pequeno.

Antes do encore, Audrey Tait veio para a frente do palco, para um momento de percussão partilhada por todos: tudo ao molho e fé na batida, pareceu ser o mote do interlúdio. No regresso ao palco, a nova ‘Billy Goodbye’ e a mais eletrónica 'Always Ascending’ serviram de aperitivo para o derradeiro êxtase da noite: ‘This Fire’, tão incandescente hoje como há 20 anos, foi oferecida com generosidade pela banda, que prolongou a canção para que todos fossem para casa com um bom sabor na boca. Desta versão tântrica constou um duelo de guitarras na passarela, misto de dança macabra e partida de esgrima, e o velho truque de mandar o público agachar-se, para depois saltar ao mesmo tempo que a canção explode. Tudo feito com tanta paixão como equilíbrio - e com uma tal frescura que só podemos acreditar que a música é, efetivamente, o verdadeiro elixir da eterna juventude.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: LIPereira@blitz.impresa.pt

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