101 canções que marcaram Portugal é uma rubrica que visa homenagear as cantigas, os compositores e os intérpretes que marcaram a história da música portuguesa em Portugal. Sem ordem cronológica rígida, são um retrato pessoal (com foco na petite histoire) do autor. Mais do que uma contextualização e de um inventário de factos conhecidos, é sobretudo uma associação de estórias e de muitos episódios não registados. São histórias com estórias para além da música. Às vezes o lado errado das canções. Sobretudo o lado errado das canções.
‘Flor Sem Tempo’, Paulo de Carvalho (1971)
Uma limusine com chauffeur branco, louro, alto e fardado a preceito, com boné. E um parceiro de pugilismo – para lhe infligir uma surra. João Braga teve dificuldade em aceder à última exigência de Miles Davis e só o conseguiu no Atlético da Mouraria: um pugilista veterano, amigo de Belarmino Fragoso, acedeu a levar uns açoites do mago do Bebop pelo cachet que este lhe propunha. Miles Davis já tinha passeado por Lisboa e perguntado a João Braga se aquela ponte imponente que ligava as duas margens do Tejo, a Ponte Salazar, edificada cinco anos antes, tinha sido construída graças à mão de obra escrava que Portugal importava de Cabo Verde. Miles Davis estava, nessa época, absorvido pelo Black Panther Party, pelo Pan-Africanismo, pela consciencialização negra através da música que produzia, o que esbarrava com a política colonialista do regime marcelista.
Estávamos em novembro de 1971, um ano memorável para a música em Portugal. Porventura o ano mais memorável para o Portugal musical. Dali a dias, subiriam ao palco do Pavilhão Dramático de Cascais Miles Davis, Keith Jarrett, Ornette Coleman, Dexter Gordon, Dizzy Gillespie, Thelonious Monk ou Art Blakey – que hoje figurarão com certeza nas playlists do melhor jazz alguma vez produzido. Dali a dias, dizia-se, Charlie Haden, contrabaixista de Ornette Coleman, pegou no microfone e dedicou, com os punhos cerrados levantados, ‘Song for Che’ (já de si insolente) aos movimentos de libertação de Moçambique, Guiné e Angola. No dia seguinte, seria preso no aeroporto de Lisboa e interrogado na Rua António Maria Cardoso pela PIDE. Na sua cela, não controlaria as lágrimas, pensando na imprudência que cometera – especialmente porque dias antes a sua esposa tinha dado à luz três gémeas.
Nesse mesmo ano de 1971, em agosto, desembarcou no Aeroporto de Pedras Rubras Elton John e dirigiu-se de imediato ao médico António Barge, cobrando aquilo que tinha exigido: um carro topo de gama com motorista. O carro não era um topo de gama, mas o motorista compensava a desfeita que era transportar a estrela de ‘Your Song’ num Fiat Giannini 128. O motorista era Júlio Isidro, locutor do Rádio Clube Português e mestre de cerimónias do festival. António Barge investira 2.500 contos naquela quimera, toda a ‘fortuna’ de que dispunha. Elton John cobrara um quarto desse valor, dera um concerto eletrizante, ainda que não se acostumando ao local e à audiência inusitados – numa aldeia em Caminha chamada Vilar de Mouros e público de coxa de frango numa mão e copo de vinho verde na outra. O palco era improvisado e o som ouvia-se vagamente através de umas colunas roufenhas. Nem por isso o primeiro Vilar de Mouros, que veria tocar artistas tão heterogéneos como Amália Rodrigues, Quarteto 1111 ou Manfred Mann, deixaria de ser considerado um Woodstock à portuguesa, um festival empreendido por um homem que sonhara trazer os Beatles até ao Minho. Esteve lá perto e nem por isso deixou de escrever história.
1971 foi mesmo um ano em cheio para a música em Portugal: Jazz de Cascais, Vilar de Mouros, “Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades”, de José Mário Branco, “Cantigas do Maio”, de José Afonso, e o Festival RTP da Canção – com duas das mais belas composições feitas em língua portuguesa e que nem sequer venceram. Esse festival seria o festival Ary dos Santos, o poeta que escrevia para o povo, que escrevia para quem não sabia ler ou para quem não tinha 50 escudos para comprar um livro (ou, pelo mesmo valor, uma entrada em Vilar de Mouros). Ary dos Santos escrevia poesia em forma de canção – para ser lida com os ouvidos, quer na rádio quer na televisão. Fora ao festival do ano anterior com uma canção perfeita – na voz de Hugo Maia Loureiro -, ‘Canção de Madrugar’, e não ganhara. Jurou que nunca lá mais voltaria: “Pindéricos; nunca mais concorro”. Voltaria sim, que as certezas em Ary eram bem mais feitas de emoção do que de convicção tomada por assomos impetuosos. Voltou nesse ano com duas grandes canções, ‘Menina’ e ‘Cavalo à Solta’, nas vozes, respetivamente, de Tonicha e Fernando Tordo (noivo da apresentadora desse ano, Ana Maria Lucas).
Fernando Tordo e Paulo de Carvalho, duas das vozes dos Sheiks, eram os favoritos. Paulo de Carvalho levava uma canção gloriosa de dois amigos do Porto. José Sottomayor e José Niza compuseram ‘Flor Sem Tempo’ e estavam convictos de que a canção iria ganhar. Só tinham uma exigência a fazer à editora Movieplay: que fosse interpretada por Paulo de Carvalho. Teve todavia de se agregar fatores para que Paulo de Carvalho aceitasse cantar ‘Flor Sem Tempo’: teria de ceder cantar em português, agora que apostava numa carreira nos States cantando em inglês, e teria de recuperar a tempo: semanas antes, na curva do restaurante Mónaco, na marginal que liga Cascais a Lisboa, num carro conduzido por Edmundo Silva, tiveram um acidente que o deixou imobilizado. Nesse festival, tirou o colar cervical segundos antes de subir ao palco e, muito fragilizado, cantou contudo ‘Flor sem tempo’ com verve - heroico e confiante.
Já tinha subido ao palco uma cândida Tonicha, distribuindo folclore e locus amoenus em versos de redondilha menor de Ary dos Santos. O melhor poema estava para vir dali a pouco, pela mesma pena. Agora sim: com ‘Cavalo à Solta’, Ary far-se-ia Ary. Com rasgos líricos em catadupa, como se ali coubesse toda a sua essência. Fernando Tordo encenou a letra de Ary com contenção, dando primazia aos versos, parecendo não os querer perturbar. Foi bebendo as sílabas, as palavras, a entoação, as anáforas, as aliterações e as metáforas. Foi bebendo a obra-prima que Ary tinha modelado para a canção que Tordo trauteara meses antes a João Maria Tudella, na Avenida de Roma, à saída do Vá-Vá. Só podia ganhar uma delas: ‘Cavalo à Solta’ ou ‘Flor Sem Tempo’. Ganhou Tonicha.
Ganhou ‘Menina do Alto da Serra’, da editora Zip-Zip – que apostara tudo naquele festival (José Fialho Gouveia tinha mesmo corrido o país colando cartazes de Tonicha por cima dos de Paulo de Carvalho, tendo porventura influenciado a votação). No final, ‘Cavalo à Solta’ quedou-se pelo terceiro lugar e ‘Flor Sem Tempo’ pelo segundo. De pouco serviu a António Rolo Duarte, manager da Movieplay, ter promovido dias antes do Festival um concurso para o público tentar adivinhar que flor usaria Paulo de Carvalho na sua lapela. Como uma premonição, a flor escolhida foi o cravo vermelho. Paulo de Carvalho ficou desolado. Não esperava a derrota. Concorrera para ganhar; nem lá iria se não fosse para ganhar.
Foi o festival da soberba. Paulo de Carvalho desvalorizou-o, alegando que a derrota não afetaria a sua carreira internacional e que nos Estados Unidos ninguém sabia que existia a RTP. Já Ary dos Santos, triunfante e sobranceiro, estava convicto de que o festival tinha começado a ter real projeção dois anos antes, quando escrevera ‘Desfolhada’ para a voz de Simone de Oliveira; afinal, a sua sofisticação lírica tinha transformado a perspetiva com que se passaria a analisar as canções.
Ary dos Santos tinha sido, afinal, o maestro da oitava edição do festival RTP, como já havia sido dois anos antes e haveria de ser de novo dali a outros dois. A história da música faz-se também de inflexões, de reversão de probabilidades, de injustiças – para no final, quem sabe, deixar que o destino se ordene. Paulo de Carvalho teve tempo para não atravessar o oceano e ombrear com as vozes negras que povoavam a América. Teve tempo de cantar a primeira senha da democracia. Teve tempo de tocar a sua voz em muitas canções que compõem a nossa história. Teve tempo de não ter pressa de partir.
O Festival de 1971 é o festival mais lembrado até hoje – sobretudo pelas canções que Paulo de Carvalho e Fernando Tordo interpretaram. Quis o destino que duas das melhores canções de sempre levadas a concurso tivessem de se conformar com um pódio menor. Em todo o caso, encetaram uma mudança na música portuguesa, relevando, a partir daí e por muitos anos, a substância que as palavras ostentam na melodia.
Na mesma rua
Da mesma cor
Passava alegre
Sorria amor
Ouvir também: ‘Walk On The Grass’ (1971). Do seu primeiro álbum, o primeiro passo para uma carreira internacional – que nunca se chegou a efetivar.
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