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Ninguém canta o amor assim: Nick Cave atirou-se nos braços de Lisboa. A crónica de uma experiência religiosa no festival MEO Kalorama

Um concerto de Nick Cave é o mais perto de experiência religiosa que um não crente poderá ter. Esta noite, no Parque da Bela Vista, o músico australiano e os seus fabulosos Bad Seeds reconquistaram uma Lisboa que não os via há uns longos 14 anos

Foi com pontualidade australiana – algo, certamente, herdado do período colonial britânico – que Nick Cave irrompeu pelo palco do MEO Kalorama adentro. Às 21h em ponto, um portentoso rufo de bateria empurrou o grito sentimentalão de ‘Get Ready for Love’, resgatado a “Abattoir Blues / The Lyre of Orpheus”, de 2004. As duas horas que se seguiram, além de uma verdadeira ode ao amor, porque ninguém escreve e canta o amor (especialmente aquele de contornos mais trágicos) como Nicholas Edward Cave, foram o mais perto de experiência religiosa que um não crente poderá vir a ter. Em momento de encerramento de digressão, o músico e os seus incríveis comparsas Bad Seeds atiraram-se a um alinhamento com muito poucos desvios àquele que o público do NOS Primavera Sound assistiu em junho passado, viajando até aos longínquos anos 80 para, por exemplo, um lancinante ‘From Her to Eternity’ e detendo-se num presente vivido entre a beleza sensível de ‘Bright Horses’, de “Ghosteen”, e a explosão de ‘White Elephant’, da aventura extra com o parceiro Warren Ellis “Carnage”.

Que Cave é, além de um magistral escritor de canções, um feroz animal de palco, toda a gente que algum dia se cruzou com ele sabe, mas o mais inacreditável é que as suas atuações continuam a surpreender até os admiradores mais apaixonados. Concerto após concerto após concerto, a sua voz vai mostrando novas cavidades e rugosidades que não lhe conhecíamos, o seu corpo vai-se arriscando mais e mais para junto do seu adorado público, no qual não se coíbe de tocar com toda a ternura. No MEO Kalorama, fê-lo num passadiço montado perto das grades, caminhando corajosa e provocadoramente junto aos admiradores de primeira fila, onde chegou a dar autógrafos e se cruzou com Paula, uma aniversariante a quem acabaria por dedicar uma contemplativa ‘O’Children’ – a terceira de três incursões por “Abattoir Blues”, depois de ‘There She Goes, My Beautiful World’. “É o teu aniversário? Fuck… Não sei o que dizer… Parabéns! Esta chama-se ‘O’Children’ e é para a Paula, é o aniversário dela”. Bonito.

Ora correndo para os braços dos seus fiéis súbditos (“é demasiado divertido, aqui em baixo”), ora subindo ao palco para se sentar ao piano – onde nos cantou, ao ouvido, com voz aveludada, ‘I Need You’ –, Cave foi estirando as suas canções até aos limites que bem lhe apeteceu. Porque pode e porque sabe como fazê-lo sem nos perder. “Lisboa. Este é o nosso último concerto de uma digressão de três meses”, explicou a dado momento da atuação, justificando, talvez, a entrega total. A “terrível e aterradora história de um amor que correu mal”, porque a tristeza cabe toda na sua voz, de ‘Jubilee Street’, a trovoada de ‘Tupelo’, uma diabólica ‘Red Right Hand’ e ‘The Ship Song’, com o vigoroso trio coral em grande destaque, ajudaram a compor um bouquet de momentos inesquecíveis deste primeiro concerto de Cave em Lisboa em 14 anos. Foi, contudo, uma intensíssima ‘Higgs Boson Blues’, o seu sonho com Miley Cyrus a flutuar numa piscina, que elevou a experiência a um nível inimaginável de entrega, seguindo logo com a cavalgada de ‘City of Refuge’, que atraiu o coro até ao passadiço para cumprimentar o público. “Veem? Eu bem vos disse que era divertido!”.

Ainda queriam um hino? Pois tiveram-no. ‘Into My Arms’, de um incontornável “The Boatman’s Call”, foi servido, num curto mas intenso encore, com toda a emoção - dedicado a Beatriz Lebre, jovem assassinada e atirada ao rio Tejo em 2020 que, segundo informação revelada pela sua mãe a Cave, adorava a canção. Ao piano e com os Bad Seeds recolhidos. Antes de pedir ajuda ao público para ‘Ghosteen Speaks’, convida todos a entrarem no ‘Vortex’, “onde vocês pertencem”, despedindo-se, momentos mais tarde, com a história de embalar ‘The Weeping Song’, colorida a palmas de uma sempre participativa audiência. “Obrigado. Muito obrigado por virem ver-nos. A sério. Não posso dizer-vos o quanto isso significa para nós”, confessou Cave, chamando a banda para junto de si e do adorador público, “vocês são lindos”. Ver dois concertos memoráveis de Nick Cave com um intervalo de quase 20 anos pode não parecer nada de extraordinário… Mas é. Especialmente para quem admira, entende e respeita, mas não venera o bardo mais iluminado de terras australianas.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: MRVieira@blitz.impresa.pt

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