Nick Cave regressa esta noite a Lisboa para liderar a última noite do MEO Kalorama. Há três meses vimos um concerto glorioso no Porto
Rita Carmo
Em junho, Nick Cave levou os seus Bad Seeds ao Porto para, no festival Primavera Sound, exorcizar os seus demónios e os dos seus acólitos. Este sábado, regressa a Portugal para atuar na primeira edição do MEO Kalorama, em Lisboa. Recorde a emoção da passagem do australiano pela Invicta para se preparar para mais logo
Nick Cave é o grande nome do terceiro dia de MEO Kalorama, tocando às 21h no palco principal. Recorde aqui a reportagem do concerto que o australiano e os seus Bad Seeds deram em junho, no Porto, e veja as fotos dessa noite memorável.
Se se costuma dizer que não há luz sem sombra, será justo concluir que não há catarse sem tensão, ou explosão sem o silêncio que a precede. Aos 64 anos, Nick Cave - mais de quatro décadas ao serviço do rock 'n' roll - aprimorou este equilíbrio, no fundo, entre vida e morte, transformando-o naquele que é, muito provavelmente, o melhor concerto que podemos ver em 2022. Ao vivo, Nick Cave e os seus impressionantes Bad Seeds (seis músicos, esta noite acompanhados por três grandes cantores soul/gospel) cometem a proeza de oferecer um grande espetáculo onde o artifício parece não morar. O concerto que ofereceram esta quinta-feira, no NOS Primavera Sound, é meticulosamente pensado e executado, acolhendo simultaneamente a centelha da espontaneidade. Ao longo de duas horas, Nick Cave, Warren Ellis (que o 'patrão' abraçará amorosamente, a certa altura), Jim Sclavunos, Martyn P. Casey e demais cúmplices vivem aqui, no momento - sem telemóveis (contra os quais Cave se insurgirá com boa disposição), sem saudades do passado nem ansiedade quanto ao futuro. Um concerto dos Bad Seeds é o sonho de qualquer terapeuta: dez humanos em palco, unidos por uma energia palpável e preocupados apenas com a sua missão, no presente. Voltar a ter esta equipa de mágicos diante de nós é um incrível privilégio.
Nick Cave, sabemo-lo bem, viu demasiado de perto a mágoa. Depois de em 2015 perder o filho, Arthur, de apenas 15 anos, comunicou há poucas semanas que também Jethro, o seu filho mais velho, falecera precocemente. Invariavelmente emotivo, o seu concerto poderia, neste contexto, tornar-se demasiado pesaroso, mas o que sucede é o inverso: frente a uma plateia que certamente terá também conhecido perdas nos dois últimos anos, o australiano gera uma corrente de partilha que tanto raia a comoção como a euforia. Menos apocalíptico do que o concerto neste mesmo parque, em 2018 (terá faltado a chuva para obter aquele efeito dramático), o espetáculo desta noite voltou a fazer tremer o chão da Invicta. Pelas 21h20, hora a que a banda surgiu em palco, com pontualidade australiana, até o vento acalmou para abrir alas para o homem-tempestade de Warracknabeal.
Por muitas vezes que o vejamos, ainda arrepia ver a figura esguia de Nick Cave assomar num palco onde já o esperam, há breves segundos, os companheiros de banda. Ao centro do palco, um piano de cauda promete solenidade; ao seu redor, uma profusão de instrumentos espera ser trazida à vida pelos magos que os domarão.
Nick Cave
Rita Carmo
Nick Cave
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Apesar de discretos na entrada em palco, os Bad Seeds são imponentes, senão agressivos, no seu repto inicial. 'Get Ready For Love'. Este é um apelo que admite apenas uma resposta: um rotundo sim, até pela forma exclamativa como é colocado. Em modo apoteótico, os músicos entram no concerto pelo final, ou seja, com o êxtase que esperamos de uma despedida. Sem aquecimento nem palavras mansas, com toda a autoridade de quem anda aqui há tempo suficiente para agarrar o touro pelos chifres, os Bad Seeds mostram desde logo ao que vêm. E Nick Cave, calcorreando o palco de forma frenética, traz em poucos segundos à nossa memória milhares de bandas que inspirou no planeta rock - no fraseado, no gesticular, na essência.
O que os sucedâneos de Nick Cave não têm, necessariamente, é o "resto": o gospel e a soul que permeiam este concerto, a alma e a fúria que animam este animal permanentemente selvagem. Dando coices no ar, agarrando a mão dos fãs, aplicando biqueiros nas partituras que o acompanham ao piano, o homem da noite é um espécimen de carisma muito raro. Autêntico dínamo de paixão & raiva, parece refletir em si uma miríade de sentimentos em bruto que, bons ou maus, todos queremos partilhar. Em palco e no fosso, onde passa boa parte do concerto, Nick Cave é um paradoxo de abandono por um lado, controlo total pelo outro. Cá em baixo, os mortais não tiram os olhos dele e querem ser pelo menos um bocadinho como o seu herói. Mais diabo do que deus, nesta noite portuense, o artista que a certa altura há de ter uma estátua no Parque da Cidade, pelos serviços prestados ao festival, provocou as primeiras filas, saltou para o piano, caiu no chão - tudo arrebatado e tudo excessivo, mas sem nunca parecer forçado, o que é raro.
Oscilando entre o enxofre de 'From Her To Eternity' à contenção ao piano de 'O Children', com o público a fazer silêncio para ouvir o fado da Oceânia, o concerto foi atentando ora ao coração, ora ao corpo. Em 'Carnage', que tocou ao piano, Nick Cave fitou o ecrã de lágrimas nos olhos, enquanto repetia as palavras "just breathe". Daí para a frente, o mote voltaria a aparecer, como lembrete ou súplica, com um efeito verdadeiramente comovente. Outra das frases que saltitou de canção em canção foi "can you feel my heart beat?", funcionando estes apelos repetidos quase como um mantra. "Baixem a porcaria das câmaras", ordenou a certa altura, troçando dos espectadores de deditos em permanente passeio pelos pequenos ecrãs. Ele está presente, e quer-nos com ele.
Chamando-nos de volta ao mundo físico e palpável, Nick Cave não poupa na intensidade, mesmo quando troca a frente da 'batalha', com a banda a pleno vapor, pelo piano que trata por tu. Em 'Jubilee Street', insinuante e provocatória, adia a libertação durante uma pequena eternidade; quando, por fim, os Bad Seeds explodem e Cave (e o público) gritam a plenos pulmões, e de forma obsessiva, "I'm vibrating, I'm transforming, look at me now!", sentimos que a canção se podia prolongar por mais dez minutos. Quando Cave se confessa ao piano, em 'I Need You' ou 'Waiting For You', o público respeita o seu ato de contrição. E quando coloca o ceptro, isto é, o microfone nas mãos de um fã, em 'Tupelo', os corações aceleram-se. Quantos êxtases pode ter uma canção? 'Red Right Hand', com o Parque da Cidade num coro gigante, desdobra-se em mil volte-faces. 'The Mercy Seat', a (não) confissão de um condenado à morte, que na sua versão Johnny Cash tornou ainda mais sufocante, desdobra-se numa espiral de loucura que nos deixa com uma certeza: Nick Cave está a envelhecer ao contrário e não há performer capaz de o bater, neste momento.
Ao nosso lado, alguém lhe chama "hipnotizador de serpentes" e refere-se aos sons sibilantes que a certa altura produz como "um ronronar"; animal de palco é uma expressão criada para artistas como Nick Cave, que conduz o concerto ao encore com 'Higgs Boson Blues', uma canção que não se limita a interpretar, mas sim a habitar. Vivendo de corpo e alma no tema de 2013, o nosso anfitrião-sacerdote volta a lembrar: "just breathe". "Can you feel my heart beat. BOOM BOOM BOOM." Deixa que um fã lhe cubra o peito com a mão durante longos segundos. E ainda saca da harmónica para, durante 'City of Refuge', apelar às últimas reservas de energia do público, que salta ao som da canção do álbum "Tender Prey", de 1988. Como consegue fazê-lo, noite após noite? Sabe Deus (ou o diabo).
No encore, um momento esperado mas nem por isso menos belo: em 'Into My Arms', Nick Cave pede ao público que o acompanhe e agradece o empenho e a emoção dos fãs. É um homem,com o seu piano e a sua tribo, numa cidade onde repetidamente tem sido feliz. Claro que, para Cave e os seus acólitos, a felicidade só chega depois de bem cutucadas as profundezas da tristeza. Mas é essa mestria que permite que o concerto termine com 'Vortex', inédito gravado em 2006 e lançado este ano, e com a muito zen 'Ghosteen Speaks' sem que um grama de emoção se evapore junto ao mar. Nick Cave sabe que não há vida sem morte, e nós tivemos a sorte de poder vê-lo celebrar a miséria e a glória da experiência humana, uma vez mais.
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