Ele viu as mentes mais brilhantes da sua geração destruídas pela loucura. Aliás, procurou destruir ele próprio a sua mente. No liceu, o homem nascido James Newell Osterberg Jr. era aluno aplicado, rei do debate e da retórica, futuro candidato à presidência da república. Até ter descoberto os blues e o rock n' roll, até ter percebido que "sucesso", na vida, é algo que pode ser mensurável de inúmeras maneiras. Nunca viremos a saber se James Osterberg teria dado um ótimo presidente dos Estados Unidos. Sabemos que deu num dos mais importantes artistas rock da história, figura deificada por jovens e seniores de Milão a Bogotá, de Vancouver a Tóquio, de Londres a Melbourne.
Em cada canto do mundo, neste preciso momento, alguém ouve "Fun House" (um incêndio prensado em vinil) e contribui para a sua própria destruição. Alguém ouve 'I Wanna Be Your Dog', a mais bela das canções de amor, e compreende que o amor é uma loucura ao ponto de querermos rastejar. Alguém ouve 'Search and Destroy' e imagina milhares e milhares de revoluções, 'napalm' no coração e na algibeira, feedback elétrico bombeando o sangue.
Ele viu, ele estava. Bebeu dos bluesmen de Chicago e de Jim Morrison, contribuiu para o conceito de concerto rock aquilo que os Acionistas de Viena contribuíram para o conceito de arte performativa: sangue, sémen, suor. Caos e a loucura. A beleza inerente ao desastre. Mas a sua loucura manteve-o, e mantém-no, são. James Osterberg tornou-se Iggy Pop, e só alguém talhado para a grandeza poderia ter a graça, no sentido religioso, de poder escolher o seu próprio nome.
Alguns compreendem-no e entoam-no: Iggy Pop, Iggy Pop, Iggy Pop, mantra místico com o objetivo de chamar à terra, nomeadamente à terra de Vilar de Mouros, aquele ser de cabelo alourado e olhos penetrantes e torso marcado por feridas de guerra mas sempre, sempre, nu. Passavam um ou dois minutos das 23h30 quando Iggy surgiu, mas nos ecrãs laterais, através de um vídeo gravado nos seus tempos áureos. Tiveram que se passar outros dois ou três, depois de uma intro experimental (culpa de Noveller), para que ele pisasse de facto o palco, num casaco que naturalmente não manteve vestido durante muito tempo.
Custa entender como é que Iggy Pop tem 75 anos e, mesmo assim, conseguiu mostrar-se muitíssimo mais jovem que alguns dos presentes. Consideremos a seguinte blasfémia: ver um espetáculo de Iggy Pop, permanecendo absolutamente estático no mesmo sítio, sem sequer um abanico de cabeça que dê a impressão de headbanging. Consideremos também que algumas dessas estátuas irão mais tarde, e nas redes sociais, lamentar-se pela morte do rock. E, por último, consideremos proibi-los, por toda a eternidade, de voltarem a ver um único concerto que seja.
O "padrinho do punk" não é para se ver parado; o homem que encarnou a loucura não merece que se lhe batam palmas a horas certas. Dito isto, Iggy Pop em Vilar de Mouros não deixou de ter os seus fiéis, os que são incapazes de não entoar bem alto tanto as canções dos extintos Stooges como as de "Lust For Life", de não deixar que o corpo se agigante e procure romper as barreiras do tempo-espaço com cortorcionismos variados.
Estavam em menor número, mas tiveram à sua frente mais um grandioso exemplo do porquê de Iggy Pop ter influenciado tanta gente e criado tanta história. Ainda que, desta feita, não tenha descido do palco (mas mesmo Jeová só o fez sob a forma de um arbusto em chamas). Ao longo de uma prestação feérica - a voz está na mesma, a banda que o acompanha é brilhante -, 'T.V. Eye' e 'I Wanna Be Your Dog', ambas de seguida, espalharam gasolina pelo recinto; foi preciso lavá-lo com a melancolia de 'The Endless Sea', tema quasi-ambient que termina com um quase sussurro.
Mas a propensão de Iggy para as chamas é sempre maior que a sua propensão para a paz, motivo pelo qual 'Lust For Life' e 'The Passenger', esta última com o coro obrigatório vindo da plateia (mal seria), surgiram logo de imediato. Até final ainda se ouviria o saxofone de 'Fun House', o verso-tatuagem que torna 'Gimme Danger' um portento (kiss me like the ocean breeze...), e um agradecimento: "isto faz com que a vida faça sentido". Para alguns, a vida também só faz sentido com Iggy Pop. A esses chamar-lhes-ão de loucos. Mas nunca uma mente iluminada pelo rock and roll será verdadeiramente destruída.
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