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Pixies: uma banda viva na última noite do festival Vodafone Paredes de Coura. Mas afinal temos saudades de quê?

A edição de 2022 do Vodafone Paredes de Coura fechou com chave de ouro. Dezassete anos depois, os Pixies regressaram ao Minho para mostrar que estão bem vivos

A história dos Pixies é rápida de se contar: entre a segunda metade dos anos 80 e o início dos anos 90 foram a banda mais importante e influente do rock alternativo norte-americano. Deram dois concertos inesquecíveis em Portugal (agitando as fundações dos Coliseus de Lisboa e Porto), acabaram em alta, deixaram os Nirvana fazer a sua magia, voltaram uma década depois para gáudio de uns fãs do primeiro momento (e outros que nunca os puderam ver 'in illo tempore') e desespero de outros. Com o sagrado não se brinca, mas antes da morte há outra fatalidade certa: pagar contas.

Se a segunda vida dos Pixies começou apenas nos palcos, em estrita harmonia com o mercado da saudade, ganhou outro fôlego quando Black Francis e companheiros decidiram que era tempo de engordar o cânone. Com "Doggerel", o álbum que o grupo lançará no fim de setembro, os nativos de Boston terão lançado tantos álbuns na meia idade como aqueles que deixaram repousar nos anos dourados da juventude. Se são da mesma cepa, é outra história.

O concerto que nesta noite de sábado vimos no encerrar do palco principal ao derradeiro dia do festival de Paredes de Coura não foi muito diferente daqueles que vários festivais e salas de espetáculos em Portugal acolheram desde o regresso da banda a palcos nacionais em 2004, no Super Bock Super Rock. Ousamos dizer, porém, que ao invés de mirrar com a idade, a banda norte-americana terá cometido a ousadia de melhorar. Discreta, silenciosa mas firmemente.

Concentrando todas as energias na boa e velha arte de dar um concerto rock, os Pixies foram iguais a si próprios: comunicação e simpatia são qualidades sobrevalorizadas no entender de Black Francis (t-shirt preta e a voz de sempre), Joey Santiago (a coolness de não querer mostrar a careca, a guitarra surf de sempre), David Lovering (imperturbável na missão de fazer sempre o mesmo, ainda que às vezes fora de tempo) e Paz Lenchantin (numa capaz emulação da senhora ausente, Kim Deal, que um dia ainda há de voltar). Mas não se pense que a 'nonchalance' reverteu para negligência: as vénias conjuntas no final são uma manifestação 'old-school' de gratidão sem hashtag.

Sabemos que estamos num concerto dos Pixies quando começamos por ouvir o som do baixo. E foi assim que se abriu caminho para 'Gouge Away', depois da qual se vê num dos ecrãs um jovem fã segurando uma placa com o seguinte pensamento inscrito: "you are the reason why I pay Spotify". Não é do tempo do vinil, tal como a maior parte dos jovens admiradores aqui presentes (infiltrados no meio dos 'moshers' profissionais da frente do palco), prova de que os legados sérios (ou sagrados, se nos quisermos repetir) são para manter. Sem Pixies não teria havido Nirvana, sem Nirvana não teria havido [inserir referência à escolha]... e por aí adiante.

O arranque é forte: seguem-se 'Wave of Mutilation' e 'Debaser', antes de uma sequência a que chamaremos "cantinho do punk rock", onde se acotovelam 'Broken Face', 'Crackity Jones' e 'Isla de Encanta'. Black Francis grita, como é da praxe, a bateria abre caminho.

Continuamos com estilo: 'Gigantic', 'Planet of Sound' mostram uma banda seguríssima da sua tarimba, sem vontade de inventar, com a firme intenção de gerar o mais imediato e inviolável reconhecimento - não há desvios alternativos ao que os discos gravaram em pedra. O público que preenche generosamente o anfiteatro courense corresponde, mais calmos e contemplativos os que ficam atrás, mais frenéticos e devotos os que se chegam à frente. Velhos e (semi-)novos.

Não é difícil reconhecer que tocar novidades refreia ânimos, mas os Pixies têm a galhardia de despachar logo quatro - e nada más, valha-nos isso. 'There's a Moon On', um 'midtempo' que não se quer cansar, mas também não envergonha; 'Who's More Sorry Now', maioritariamente acústica e com um solo breve mas melodioso de Joey Santiago; 'The Lord Has Come Back Today', mostrando uns Pixies menos sinuosos, mais diretos, e com direito a um final 'beatlesco'; 'Vault of Heaven', o novo single - nada a temer. Mais perto do fim, 'Human Crime' também aparece.

Depois de 'Cactus' e da virulenta 'Nimrod's Son', acendem-se os telemóveis ao primeiro acorde de guitarra de 'Here Comes Your Man', a mais popular canção dos Pixies, vírus identificado na playlist da M80 desde tempos imemoriais. 'Ana' é dengosa; 'Mr Grieves', um habitual regresso a "Doolittle" (mais adiante, saúde-se também 'I Bleed'); 'Motorway to Roswell', com o seu embalo contido, a fazer sempre boa figura; 'Caribou', anos 50 bem medidos.

Não há muito a dizer sobre o que sucede entre músicas porque sucede nada. Os Pixies limitam-se a tocar e esta é uma noite 'sim'. Atiram-se a 'This Monkey Gone to Heaven', 'Bone Machine' e até 'I've Been Tired', aquele meio-ska sacado ao debutante mini-álbum "Come On Pilgrim", já com 35 anos de vida.

A reta final segue o manual de como fazer 'setlists': 'Head On', a costumeira versão dos Jesus and Mary Chain, 'U-Mass', bem gritada, 'Hey', a reprise lenta de 'Wave of Mutilation', 'Where Is My Mind' (claro) e 'Winterlong', versão de Neil Young lançada em lado B de single em 1990. Talvez já seja a altura de receber de braços abertos os velhos Pixies: não são uma banda nova, mas são uma banda viva.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: lguerra@blitz.impresa.pt

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