Sem terem, com certeza, consciência disso, os Idles acabaram por ficar, este ano, ligados a dois momentos importantes da música ao vivo em Portugal. Primeiro, em março, atuaram no Coliseu de Lisboa, dando um concerto memorável não só pela música, como pelo facto de o espetáculo ter sido provavelmente o primeiro momento em quase dois anos em que os fãs puderam celebrar de pé. Ainda com máscaras, é certo, mas com uma iminente sensação de liberdade que caiu que nem ginjas e encharcou corpos & couros cabeludos. Cinco meses depois, poderíamos temer que o reencontro não fosse tão especial, mas a rapaziada de Bristol encarregou-se de inscrever a ocasião na história de Paredes de Coura. No regresso de um dos grandes festivais de verão, a sensação de viver um concerto com este nível de energia - estamos certos de que a bateria de John Beavis se terá ouvido, esta noite, em Santiago de Compostela - é, no mínimo, um prazer imenso. Mas também uma sorte, um privilégio e um luxo partilhado pela banda. Habituados às andanças do rock, sabemos que faz parte do 'jogo' dizer que o público que se tem pela frente é o melhor do mundo. Mas também percebemos quando a emoção dos músicos é minimamente genuína. E gostamos de acreditar nessa vã glória do amor correspondido, nem que seja por uma noite.
No seu sexto concerto em Portugal, e primeiro em Paredes de Coura, os Idles tomaram o palco à hora marcada, assomando perante a multidão de forma discreta. A espera pode não ter sido longa, mas a ansiedade era palpável: nas laterais do palco, o omnipresente relógio digital mostrava que eram horas de matar (esta expectativa). Atrás de nós, um rapaz exclamava: "vamos lá embora, que eu tenho um casamento no sábado." Em palco, qualquer movimentação suspeita gerava reboliço. Até que, com os cinco Idles nos seus postos, o bicho que é 'Colossus', pendurado do baixo de Adam Devonshire, começa a espreguiçar-se. O público cutuca-o, Joe Talbot, vocalista e frontman carismático, observa a plateia ondulante. Estão reunidas as condições para a peleja, que será também uma celebração (ou vice-versa).
Bastou essa canção de abertura, como sempre dividida em duas partes (na segunda, Talbot manda a plateia separar-se a meio, para depois chocar com estrondo), para perceber que não mais as placas tectónicas de Coura voltariam ao lugar. Líder mas pouco, já que todos os músicos cumprem um papel visivelmente importante no grupo, Joe Talbot é ao início uma espécie de animal enjaulado, descrevendo círculos em palco. Pouco depois, rodopia o microfone pelo cabo, numa espécie de B-A-BA do rock. Tudo nos Idles, de resto, é básico no melhor dos sentidos. A transferência física de uma imensa energia; a alternância entre pressão & libertação; o uso e abuso do silêncio, numa banda especialmente ruidosa. Tudo é simples, no sentido em que resulta na perfeição e sacia o desejo de músicos e fãs, unidos numa mesma onda elétrica.
Ao segundo tema, 'Car Crash', do novo "Crawler", já um dos guitarristas, Lee Kiernan, faz crowdsurf na plateia. "Que saudades de uma cena destas aqui em Coura. Parece que já foi há 12 anos", exclama à nossa frente um espectador, a quem no final do concerto ouviremos a mesma frase, com a palavra "caos" a substituir "cena". Em palco, o rolo compressor dos Idles avança, com uma 'Mr. Motivator' bem mais feroz do que em disco e o hino 'Mother' a aguçar gargantas. Segue-se 'Divide and Conquer', em que Joe Talbot meneia o seu rabinho sexy, adocicando a selvajaria total que se seguiria, no mosh pit.
Nas primeiras palavras aos fãs, além de "olá" e "obrigado", o mestre de cerimónias faz questão de dizer que, desde que a banda começou a tocar, "o amor e a energia" que o público português lhes emprestou "ainda não foi suplantado". Por isso lhe está grato, explica, antes de partir para a canção mais soul do catálogo dos Idles, 'Beachland Ballroom', com o guitarrista Mark Bowen no piano. Apesar da intensidade da quase-balada, é um momento que funciona para recuperar energias para o 'senhor' que se segue: 'Never Fight a Man With a Perm', talvez o melhor exemplo, no cancioneiro da banda, de duas das suas maiores virtudes: a diversão e a agressão, tudo a galope de um riff onde apetece passar o resto do festival. Esta noite, o tema do álbum "Joy As An Act of Resistance" brilha com especial fulgor, garantindo entrada direta no best of imaginário de Paredes de Coura.
De 'Never Fight...' para 'Crawl!', numa versão mais seca e esquelética, a transição faz-se sem costuras. Estas são canções que se antecipam batendo os pés no chão e se celebram esticando os braços no ar, numa experiência física e emocional que 'A Hymn', com o refrão-súplica "I wanna be loved/Everybody does", leva para outras latitudes. Aqui, a bateria de Mr. Beavis é um coração, batendo a par e passo com o do narrador que, logo de seguida, salta para a espiral de adição que aflige a sua família, em 'The Wheel'.
É chegada a altura do discurso, esta noite mais confessional do que motivador. "É escusado dizer que nunca hei de esquecer isto", diz, olhando para a plateia que se derrama até às últimas árvores do anfiteatro. "Durante anos, tive pavor da morte e de ficar sozinho, algo que combati com muitas drogas e os meus amigos. Agora, viajamos pelo mundo e sinto-me seguro nos vossos braços. O amor e carinho que me dão fazem-me sentir que posso morrer seguro", partilhou. E, para que todos voltassem para a casa ou para a tenda com uma mensagem importante, apresentou uma canção sobre a importância dos imigrantes: 'Danny Nedelko', um dos primeiros êxitos dos Idles, inspirada por um amigo ucraniano da banda. Desta vez, é Mark Bowen que, atraído pela energia do público, vem até às grades. No último adeus, ao som de 'Rottweiler', Joe Talbot vai para a bateria e a energia transborda do palco. Esta força, esta mensagem, esta prova de vida - tentemos levá-las connosco para o resto do ano. Bem precisaremos.
Assine e junte-se ao novo fórum de comentários
Conheça a opinião de outros assinantes do Expresso e as respostas dos nossos jornalistas. Exclusivo para assinantes