Iron Maiden ao vivo no Estádio Nacional: mais do que um concerto de rock, uma peça de teatro
Iron Maiden no Estádio Nacional, Lisboa
Rita Carmo
Iron Maiden no Estádio Nacional, Lisboa
Rita Carmo
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Vimos um festim sensorial esmagador e mais de 30 mil fãs a cantarem em uníssono algumas das canções mais emblemáticas da história do heavy metal. O primeiro concerto de estádio dos Iron Maiden em Portugal foi um espetáculo elaborado de uma banda com quase 50 anos de percurso, mas que soube envelhecer como poucas
José Miguel Rodrigues (texto) e Rita Carmo (fotos)
Trinta e oito anos depois se terem estreado por cá, e quatro após a última passagem pela Altice Arena, em Lisboa, os Iron Maiden agraciaram finalmente a sua vasta legião de fãs nacionais com um muito aguardado retorno.
Desta vez, a ocasião era especial – e por diversas razões. Primeiro, porque a banda liderada por Steve Harris ia protagonizar o seu primeiro concerto de estádio em solo luso; depois, porque o espetáculo tinha sido originalmente anunciado para o ano de todos os males e, consequentemente, adiado por causa da pandemia, aumentando exponencialmente os níveis de antecipação relativamente à celebração. Além disso, originalmente anunciada como uma digressão em regime best of, em que a banda se iria focar única e exclusivamente nos seus temas mais conhecidos, e que devia ter ficado concluída em 2020, a gigantesca Legacy Of The Beast Tour acabou inevitavelmente por tomar uma forma ligeiramente diferente a partir do momento em que, a 3 de setembro de 2021, foi editado "Senjutsu", o 17º álbum do sexteto britânico.
Com os músicos a tentarem manter-se tão fiéis quanto possível ao repto original, mantendo o foco na interpretação de clássicos, a atuação de hoje, no Estádio Nacional, sairia sempre a ganhar quando comparada com a de 2018 não só pela dimensão da produção apresentada, mas também pelo facto de ter dado oportunidade aos presentes de ouvirem pela primeira vez ao vivo alguns temas em estreia.
Foi já depois da atuação de duas bandas de “suporte”, os roqueiros australianos Airbourne e os metaleiros sinfónicos neerlandeses Within Temptation, que as luzes diminuíram finalmente e um ruído baixo sinalizou a chegada da grande atração da noite. A incontornável 'Doctor Doctor', dos UFO, que há anos serve de mote para as entradas em palco dos Iron Maiden, começou a soar no PA e, de imediato, despertou um rugir em uníssono, que se foi espalhando do relvado totalmente esgotado às bancadas.
Ambiente Iron Maiden, Estádio Nacional, Lisboa
Rita Carmo
Ambiente Iron Maiden, Estádio Nacional, Lisboa
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Com a entrada dos músicos em palco, a euforia palpável no ar encontrou finalmente um ponto de saída e a receção foi tão calorosa quanto se possa imaginar, com a plateia totalmente rendida à ideia do que estaria para vir. Com o palco decorado com tons e motivos orientais, como se a banda tivesse sido subitamente levada para o Japão, os seis músicos atacaram 'Senjutsu', o tema-título do seu álbum mais recente, que não só deu o tiro de partida para a atuação, como inspirou o primeiro momento de impacto visual da noite, com a aparição em palco da famosa mascote Eddie, na sua versão samurai. A reação? Euforia total, claro. Mantendo o mesmo cenário, e apoiado num jogo de luzes impressionante e num som cristalino e definido raro de ouvir em estádios, o grupo deu seguimento ao concerto com os singles 'Stratego' e 'The Writing On The Wall', que encerraram a primeira parte do espetáculo, dedicada ao mais recente disco.
'Revelations' deu início à segunda parte do concerto, com uma mudança de cenário e sequência de temas de inspiração religiosa, composta por 'Blood Brothers', a épica 'The Sign Of The Cross' (durante a qual o vocalista Bruce Dickinson carregou uma cruz iluminada pelo palco) e a clássica 'The Flight of Icarus' (com Bruce particularmente entusiasmado com o seu lança-chamas), até à queda final de Ícaro no fundo do palco.
Por esta altura, já não é propriamente novidade para ninguém que os Iron Maiden sempre fizeram questão de apresentar espetáculos tão vistosos quanto possível – aliás, o pendor para o uso de truques em palco vem desde a altura em que ainda andavam a tentar estabelecer reputação nos pubs londrinos. No entanto, também é sabido que quase todas as bandas com longas histórias de espetáculos teatrais e elaborados chegam a uma altura das suas carreiras em que se deparam com a opção de se despirem de todos os adereços para voltarem “apenas à música” ou tornarem as coisas ainda maiores do que já é habitual. A Legacy Of The Beast Tour opta por este último rumo, com os concertos a afirmarem-se como os mais extravagantes a nível visual que as lendas britânicas alguma vez apresentaram. Focados numa série incontável de elementos de palco, mudanças de figurino e cenários que dão vida às canções, aquilo a que assistimos hoje à noite ficou bem mais perto do que se vê habitualmente numa peça de teatro do que num vulgar concerto de rock.
É lógico que um festim sensorial tão esmagador poderia facilmente servir para distrair a plateia de um espetáculo musical sem brilho, mas a esse nível os Iron Maiden também não deixam os seus créditos por mãos alheias. Qualquer pessoa que esteja minimamente familiarizada com o som do grupo está bem ciente dos elementos sónicos que os tornaram influentes ao longo dos anos – o ataque triplo de guitarras, o ritmo 'galopante', a voz de Dickinson – e todos, pese a tendência de Bruce para apressar grande parte dos temas, marcaram presença de forma intocável, com cada elemento a desempenhar o seu papel de estrela do rock com empenho e uma estamina que fazia corar muitos músicos com metade da idade.
A verdade é que ver uma banda tão tecnicamente realizada em palco é, em quase tudo, muito semelhante a ver atletas olímpicos a competirem; em ambos os casos, o impacto de termos à nossa frente seres humanos incrivelmente habilidosos, a executarem tarefas complicadas com uma precisão inegável, é quase tão tocante como ouvir mais de 30 mil fãs a cantarem em uníssono as letras de temas como 'Fear Of The Dark', 'Hallowed Be Thy Name', 'The Number Of The Beast' (acompanhada por explosões constantes) ou 'Iron Maiden', que incluiu a já habitual aparição de um Eddie em ponto gigante no fundo do palco.
Para o encore, ficaram guardadas 'The Trooper', com nova aparição da famosa mascote a lutar com Bruce, 'The Clansman', 'Run To The Hills' e, a terminar, já depois de termos ouvido mais uma vez o discurso de Churchill, 'Aces High', com um Spitfire em tamanho real em palco. Resultado, após o espetáculo de duas horas que trouxeram ao Jamor, tornou-se bem claro que a banda pioneira do heavy metal soube como envelhecer com uma respeitabilidade sem grandes precedentes.