Comecemos com uma conversa hipotética:
- Qual é o teu álbum preferido dos Pink Floyd?
- Ui, há tantos por onde escolher. O "Dark Side Of the Moon", naturalmente... Ou o "Wish You Were Here". Se calhar o "The Wall" (we don't need no education!). Também gosto muito do "Animals"...
- E qual é o teu membro preferido dos Pink Floyd?
- O Roger Waters. Pelas composições, pela linha de baixo da 'Money'. Mas também gosto dos solos do David Gilmour, claro. E o Richard Wright acrescentava-lhes aquelas paisagens sintetizadas...
É, nunca ninguém se lembra do baterista. O que é estranho, já que o baterista é Nick Mason, o único membro dos Pink Floyd que, para além de ter ajudado a formar a banda, tocou também em todos os discos que esta lançou ao longo da sua existência. Do cânone rock fazem parte todos os nomes anteriores e, por vezes, Syd Barrett também se lhes junta; Mason parece ser constantemente relegado para um papel à parte, como alguém que se esconde debaixo de tudo o mais que fazia, e faz, a sonoridade dos Pink Floyd. Prova disso? O facto de o Campo Pequeno não ter tido sequer meia casa, para o ver com os "seus" Saucerful of Secrets (Mason, Dom Beken, Lee Harris, Guy Pratt e Gary Kemp dos Spandau Ballet), mesmo tendo em conta o calor e/ou o preço dos bilhetes.
No entanto, quem esteve no Campo Pequeno pertence àquela classe da qual comummente se diz "poucos, mas bons". Vimo-los aplaudir de pé, logo na entrada dos músicos em palco, sob uma escuridão pontuada por curtos flashes de luz e a intro cósmica que desembocava no rock psicadélico de 'One of These Days' - tema que os Pink Floyd incluíram no enormíssimo "Meddle", o álbum que marca a divisão entre os Pink Floyd de Syd Barrett e os Pink Floyd de Waters e Gilmour. Voltámos a vê-los a aplaudir de pé, por diversas vezes, durante o espetáculo, reagindo efusivamente às notas iniciais de "Echoes", à mui roqueira 'The Nile Song', à maravilhosamente louca 'Bike', a fechar. Quando não se erguiam ou aplaudiam, abanavam solenemente a cabeça para a frente e para trás, erguiam indicador e mínimo em adoração à eletricidade e não ao chifrudo, ou apontavam os telemóveis na direção do palco, já que Mason fez questão de indicar que não havia problema em guardar um souvenir formato vídeo.
O que se retira destas duas horas e meia de concerto, com um intervalo de vinte minutos pelo meio (que serviu para fumar um cigarro, beber mais um copo, ir à casa de banho ou descansar as pernas e os braços, no caso do baterista), é uma gigantesca celebração dos Pink Floyd, ainda que não daqueles Pink Floyd que o mainstream conhece - os de 'Time' ou 'Money', os de 'Another Brick In the Wall' ou 'Comfortably Numb'. Com os Saucerful of Secrets, Mason prefere olhar para os primórdios do grupo que viu nascer, sobretudo para os da fase Barrett, mais psicadélicos, menos progressivos na sua abordagem ao rock. Há alguns anos, era comum ouvir, em meios hipster, que os únicos Pink Floyd que interessavam eram os dos dois primeiros álbuns ("The Piper At the Gates Of Dawn" e "A Saucerful of Secrets"); caso os hipsters ainda existam (esperemos que não), e caso tenham estado pelo Campo Pequeno esta noite, não podem senão ter saído agradados. Faltou apenas um "hino": a fritaria que dá pelo título de 'Interstellar Overdrive'.
O que não significa que o baterista tenha apreço, única e exclusivamente, por esta fase do grupo. Ouvimo-lo contar histórias sobre as canções às quais ajudou a dar forma e ficamos com a sensação de que, no meio de uma banda carregada de egos, ele é provavelmente o único gajo porreiro no meio de tudo aquilo - ou, pelo menos, o único que não teve tricas com ninguém e guarda boas memórias de todos. Vimo-lo homenagear Barrett e Wright, vimo-lo falar do tema que lançou recentemente com Gilmour, em apoio ao povo ucraniano ('Hey, Hey, Rise Up!'), vimo-lo contar que passou «boa parte da vida a ver o Roger [Waters] a bater num gongo», antes de ele próprio fazer o mesmo durante 'Set the Controls For the Heart of the Sun', que atingiu o seu apogeu perto do final e durante a ruidosa cacofonia que ecoou por todo o recinto, após o dub estelar pela qual o tema de "Ummagumma" é (mais) conhecido.
Naquela que foi a última data desta etapa da sua digressão, Mason lembrou ainda o concerto que deu em Lisboa com os Pink Floyd, no ido ano de 1994 (no "velhinho" Estádio de Alvalade), conferiu a temas como 'When You're In' o som de uma bateria poderosa e passou por lados mais esquecidos (a não ser que se seja absolutamente fanático) do grupo, como 'Vegetable Man' (canção nunca acabada e nunca tocada ao vivo pelos Pink Floyd, "nem pelo Roger, nem pelo David, nem pelos australianos", frisou) ou 'Let's Roll Another One'. Do resto da banda, que se mostrou em forma, destacou-se sobretudo Gary Kemp, "que da noite para o dia deixou de ser new romantic para passar a ser do prog", e a quem pertence a frase da noite: "quando éramos miúdos comprávamos estes discos a pensar que eram os melhores de sempre; hoje sabemos que são os melhores de sempre". O encore, com 'Bike' mas também com 'A Saucerful of Secrets' e o velho clássico 'See Emily Play', pôs termo a "uma noite maravilhosa". Nunca ninguém se lembra do baterista? Pode ser que a partir de agora as coisas sejam diferentes.
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