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St. Vincent no NOS Alive. A diva rezou (e foi adorada) no altar do rock

No regresso a Portugal, Annie Clark, mais conhecida como St. Vincent, brilhou na guitarra e montou todo um espetáculo em torno dos seus últimos dois álbuns. Os fãs desta verdadeira artista conceptual saíram de barriga cheia

Na última noite da sua digressão pela Europa, Annie Clark, que se autobatizou St. Vincent depois de uma canção de Nick Cave lhe sussurrar que foi no hospital desse nome que o poeta Dyan Thomas deu o último suspiro, foi recebida em êxtase no palco Heineken do NOS Alive. Foi exatamente às 21h50, hora marcada para o início do concerto, que as gargantas dos presentes se incendiaram, perante os primeiros sinais de vida em palco. Antes de Annie, porém, chegou a sua banda, onde se destacam o guitarrista Jason Faulkner e as três prodigiosas cantoras soul/funk do coro. Depois de todos ocuparem os seus postos é que uma das figuras mais singulares do rock contemporâneo assomou em palco, provocando os admiradores (deu um ar da sua graça, desapareceu, voltou a aparecer). Em modo diva dos anos 70, a norte-americana teve desde logo o público a seus pés e, na hora que se seguiu, não descansaria à sombra dos louros, trabalhando para merecer todo o carinho.

Cantora e compositora, mas também guitarrista e artista conceptual que a cada álbum veste uma pele diferente, St. Vincent vem traçando um trajeto bem personalizado e imprevisível. Em "Daddy's Home", o disco de 2021, a sua máquina do tempo aponta para os anos 70. Sonoramente, é a essa década, e à Nova Iorque do Studio 54, que as canções piscam o olho de sombra garrida. Liricamente, a autora usa a prisão do pai, que cumpriu uma pena de nove anos por fraude fiscal, para urdir canções pessoais, mas nunca confessionais. Por alguma razão David Byrne, com quem gravou "Love This Giant" em 2012, diz que passou um ano com ela na estrada, sem chegar a conhecê-la. Ao contrário de outros artistas, e por muito que até vá revelando sobre a sua vida "real", St. Vincent parece ter terror à música dita intimista. Apoiando-se nos ombros de gigantes como David Bowie, Prince ou o próprio Byrne (Talking Heads), constrói a cada álbum universos autónomos, permanecendo ela própria um mistério. O que contribui para o seu charme, aplaudido euforicamente esta noite.

Com banda e cantoras perfeitamente enquadradas no imaginário retro de "Daddy's Home", St. Vincent alternou entre as canções desse disco (recuperando o seu melhor sotaque texano para apresentar o tema-título com um "Daddy's home, y'all") e do anterior "Masseduction", já indicativo de uma direção mais eletrónica, para entre brilharetes na guitarra elétrica, uivos & gemidos ("I wanna be looooved", anuncia com lascívia em 'Pay Your Way In Pain') e muita teatralidade (com a nova versão da antiguidade 'Your Lips Are Red' a evocar uns Sparks) encerrar da melhor forma a presente digressão.

Se tivéssemos de escolher dois momentos para o pódio, eles seriam aqueles em que esta "guitar heroine" brindou ao público pela oportunidade de estarmos todos juntos outra vez; e a canção 'New York', uma das mais celebradas da noite e espécie de 'irmã espiritual' de 'Seventeen', de Sharon Van Etten, numa certa efervescência que talvez mesmo sem palavras remetesse para a energia borbulhante da Big Apple. Foi aí que St. Vincent abandonou um pouco a personagem em eterno controlo a que se entrega, e desceu ao público, contactando de perto com os fãs em delírio. Foi mais ou menos o que pensávamos que seria o regresso aos concertos quando sonhávamos com esse dia, foi catártico e foi bonito.

Uma versão bem pesada de 'Cheerleader', espelhando a inquietude e vontade de mudança da sua autora, e a despedida com 'Melting of the Sun', numa viagem do psicadelismo à apoteose soul/funk, com as brilhantes cantoras na frente do palco, foram outros dos momentos para mais tarde recordar neste regresso de St. Vincent a Portugal. "Obrigado so much", despediu-se a entertainer, de volta à pele humana de Annie, essa mulher-mistério que ninguém parece conhecer, mas muitos continuam a tentar desvendar.

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