Às vezes acontece, e acontece sobretudo quando há um nome que concentra em si as maiores atenções num determinado 'slot' festivaleiro, deixando outros espetáculos às moscas. Não terá acontecido a Herman José, que cerca de 40 minutos depois do início do seu 'stand-up' no palco Comédia do NOS Alive, via uma pequena multidão abandonar o espaço ao som de 'És Tão Boa' - infelizmente, já não fomos a tempo de apanhar sequer um niquinho. Aconteceu, porém, a Nilüfer Yanya, que às 23h45 em ponto tinha na vasta tenda do palco Heineken um número de pessoas que conseguiria, porventura, meter numa festa em casa.
Poucos mas bons, manda o cliché dizer. E, paulatinamente, cada vez mais, até que no final se poderá dizer que a cantora e compositora britânica terá saído do festival com 10 vezes mais fãs do que quando entrou em palco.
Yanya é incatalogável no cenário rock britânico. Senhora de uma voz flexível e maleável, passa do grave torneado a agudos elegantes, num ping pong onde o frenesim não é gratuito, onde o fraseado lírico é rítmico, musical, guia de canções sinuosas. Canções plenas de desvios, aflições, saídas de emergência e feitas de um ziguezaguear constante entre a ansiedade e o apaziguamento (com vantagem para a primeira).
Poderá dizer-se que Yanya, que tem dois elogiadíssimos discos lançados em 2019 e 2022 ("Miss Universe" e "Painless", respetivamente), joga os trunfos da galesa Cate Le Bon, incorporando uma liga que antigamente se designaria de art-rock, género capaz de incutir um cunho aventureiro ao rock sem, contudo, o estilhaçar em experimentalismo extremista. Mantendo-nos em terras britânicas, terá também uma centelha de Lonelady, cantora e produtora de Manchester, no exame laboratorial de um pós-punk hermético. E o seu quê de PJ Harvey, especialmente na crueza com que, por vezes, aborda a guitarra (e não foi de estranhar que uma versão de 'Rid of Me' tivesse surgido no alinhamento).
Em palco, Nilüfer ocupa uma posição central, longo vestido negro e guitarra na mãos, pedais ao dispor para empurrar ou puxar as canções para/de territórios que tanto tocam o etéreo como o crispante. Consigo, uma teclista/saxofonista (e como foi importante o saxofone para incutir um ambiente narcótico e misteriosamente jazzístico, por exemplo, a 'Belong With You'), uma baixista e um baterista.
Sorridente e 'esmagada' pelo calor de Algés, Yanya mostrou um catálogo incrível de canções diferentes que, contudo, se dispõem em leque, unidas por um fraseado lírico quebrado, intenso, sublinhado, o norte absoluto das composições. Começa com a pastoral 'Midnight Sun', que adiante ganha 'fuzz' e 'shoegazing', emagrece para 'Chase Me', com uma guitarra grungy comprimida e uma bateria crocante, brinca com o minimalismo em 'L/R', canção que a artista revela ter começado em Lisboa há 3 anos (no Super Bock em Stock pré-pandemia).
Em 'Angels', proveniente do mais 'indie rock' "Miss Universe", a guitarra ruge; em 'Baby Luv', que remonta a 2017, Nilüfer parece falar duas vozes num diálogo interno. Faltou a fortíssima 'In Your Head', o mais próximo que Yanya esteve do 'hit' rock mais normalizado (ainda que esquizoide q.b.), mas o público bem desperto aplaudiu intensamente um espetáculo quase 'privado' no início, que acabou em aclamação. Havemos de voltar a ver-nos.
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