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A noite passada com “Variações” no Capitólio: as grandes canções e o ‘pequeno’ holograma

António Variações ‘ressuscitou’, 38 anos depois da sua última aparição em palco, no espetáculo “Há Uma Noite P’ra Passar”, no Capitólio, em Lisboa. Mas só através da música (Sérgio Praia e a sua banda transpiram Variações), já que o anunciado holograma demorou a entrar em cena e não serviu para matar saudades

Paulo André Cecílio

"Não só nunca existiu uma sociedade tão obcecada com os artefactos culturais do seu passado imediato, como também nunca existiu uma sociedade capaz de aceder ao seu passado imediato tão fácil e copiosamente", escreveu Simon Reynolds em "Retromania". O sucesso do filme "Variações", e o sucesso subsequente da digressão da banda que interpretou os êxitos antigos de António Variações nesse mesmo filme, agem como o exemplo perfeito dessa ideia.

Mais que mero revivalismo, aquilo que tem acontecido com António Variações é uma espécie de ressurreição, palavra que num país cuja identidade cultural se faz (também) com o sebastianismo ganha todo um outro significado. A música de Variações entrou nos hábitos de consumo das novas gerações como se o músico minhoto tivesse voltado do nevoeiro para representar tudo aquilo de que gostamos na pop: novidade, irreverência, visceralidade. Gerações que, à falta de outros (pelo menos num Portugal ainda perigosamente tacanho), encontraram nele o ídolo queer que queriam ter conhecido aquando da sua primeira aparição.

Na noite de terça-feira, no Capitólio, para um evento apresentado como o primeiro concerto de um cantor português em formato holograma, era possível constatar uma plateia dividida entre aqueles para quem Variações é nostalgia (os mais velhos), e aqueles para quem Variações é revolução (os mais novos). Em palco, a banda do filme: Sérgio Praia, cujo rosto e voz se confundem com a do falecido músico, Duarte Cabaça, David Silva, Vasco Duarte e Armando Teixeira.

Cínicos dirão que tudo isto são simples versões e uma mera reapropriação do passado no presente. Outros lembrar-se-ão de um ponto interessante: se ainda hoje se interpretam músicos falecidos, canónicos, como Bach, Beethoven ou Mozart, porque não interpretar um músico falecido e canónico - no caso português - como António Variações? Seguindo esta última linha de pensamento, da banda nada há a apontar: Sérgio Praia transpira Variações em palco (tanto, que a dada altura se lembrou de pedir emprestado um leque a uma fã da plateia), temas como 'Toma O Comprimido' (psicadelismo no seu melhor) e 'Visões-Ficções' soam grandiosos, 'Anjo Da Guarda' e 'O Corpo É Que Paga' são, como em qualquer espetáculo de estádio, entoados a plenos pulmões pelo público.

É em relação à primeira linha que somos obrigados a declarar o "holograma Variações" como uma desilusão (na verdadeira aceção do termo: desengano; embuste, até), tendo sido precisos 62 minutos até que "ele" fizesse a sua aparição em palco: a cortina é descida, cobrindo meia banda, uma tela transparente é colocada, e os projetores são dispostos nas laterais para alimentar as fantasias que o cinema projetou no meu olhar. Tudo para uma espécie de dueto em 'Canção de Engate', sem que o dueto fosse entre Sérgio Praia e António Variações, mas entre Sérgio Praia e Sérgio Praia: o holograma de que se fala foi construído a partir de um deepfake do ator, no filme, e a voz que debitava as tiradas típicas de um concerto ("boa noite!", "tudo bem?") era também a sua.

O wrestling norte-americano tem uma expressão, kayfabe, que designa todos os eventos que são interpretados na narrativa própria dessa novela-desporto, sendo que to break kayfabe, ou quebrar a ilusão, é expressamente proibido. No Capitólio, a quebra sucedeu precisamente quando o cenário foi montado para a projeção, notando-se que estava a ser montado: na "ressurreição" de Variações pedia-se maior fantasia, até nos preparativos. Assim como se pedia que a palavra "holograma" não fosse utilizada de ânimo leve, pois não se trata de "holograma", por exemplo, uma apresentação escolar que recorra a um retroprojetor.

Havia, é certo, uma forma de dar força à magia: assistir ao concerto através de um smartphone, no caso o modelo Galaxy S22 da Samsung. Aliás, o concerto no Capitólio foi, como se pôde ler no texto de apresentação do evento, "criado para ser captado pelas características únicas de Nightography do Galaxy S22"; o que significa, em primeiro lugar, que quem tinha esse modelo poderia, à partida, apreciar o holograma na sua plenitude; mas, em segundo lugar, que continua a não ser um holograma, mas talvez uma espécie de realidade virtual. Seja como for, e porque um concerto em holograma não deveria ser, em teoria, algo para o qual se necessite de um smartphone (adequado, por outro lado, para documentar o filme-concerto que se anuncia com imagens recolhidas pelo público), o resultado ficou aquém do esperado por alienar uma parte substancial da plateia da experiência in loco. Resta a música, que viverá para sempre.

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