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Rock in Rio Lisboa: os Black Eyed Peas transformaram a Bela Vista numa gigantesca discoteca ao ar livre

Fogo em palco, êxitos próprios e alheios, lives do Instagram feitos pelos músicos, apelos ao usufruto das novas canções em todas as plataformas de streaming: os Black Eyed Peas trouxeram à Bela Vista todas as vertentes de entretenimento e consumo do próprio festival
Rock in Rio Lisboa: os Black Eyed Peas transformaram a Bela Vista numa gigantesca discoteca ao ar livre

Lia Pereira

Jornalista

Rock in Rio Lisboa: os Black Eyed Peas transformaram a Bela Vista numa gigantesca discoteca ao ar livre

Rita Carmo

Fotojornalista

Passar os olhos pelos comentários aos vídeos dos Black Eyed Peas no YouTube é, em 2022, uma experiência curiosa: para quem já era adulto quando a banda da Califórnia se tornou famosa, "nostalgia" não seria propriamente palavra que associássemos à trupe de Will I. Am. Porém, quem foi criança ou adolescente no final dos anos 90 e no início da década seguinte já sente saudade dessa fase da sua vida e suspira com os vídeos dos êxitos que ainda contavam com a voz, e o carisma, de Stacey Ferguson, aka Fergie, vocalista que militou nos Black Eyed Peas entre 2002 e 2016, tendo abandonado o grupo para se dedicar à maternidade.

É a esse catálogo de êxitos que em muitos desperta já, então, uma certa nostalgia que assenta o espetáculo que os norte-americanos deram este domingo, num Parque da Bela Vista repleto de festivaleiros sôfregos de festa. Não é simples explicar a loucura que se espalhou no recinto, ao longo da hora e meia que durou o concerto. Talvez fosse esse o espetáculo que a nação festivaleira ambicionava, após um confinamento que pareceu durar séculos. A verdade é que, desde o começo com 'Let's Get It Started' até à despedida de 'I Gotta Feeling', os Black Eyed Peas não tiveram qualquer prurido em oferecer ao povo o que o povo quis ouvir (no caso do hino da seleção portuguesa no Mundial de Futebol de 2010, até o ofereceram duas vezes, "ensanduichando" entre ambas as doses o novo single, 'Don't You Worry', suspeitamente parecida com a canção que embalou a equipa de Carlos Queiroz na sua modesta campanha na África do Sul).

Mas nem tudo é passado, nos Black Eyed Peas. Aliás, desde 'Let's Get It Started', apresentada com um novo tempero latino, que é percetível que os californianos estão extremamente atentos às tendências mais contemporâneas, visitando o reggaeton e a EDM paragem sim, paragem não (as mais recentes 'Ritmo (Bad Boys For Life)' e 'Mamacita' são disso exemplos). Em estúdio, a banda parece apurar ao pormenor mais matemático a fórmula certa para acertar em todos os centros nevrálgicos do sucesso no século XXI: letras em espanhol? Há, e Taboo, um dos membros do trio, até recorre às suas origens mexicanas (e indígenas) para se dirigir à plateia no idioma de nuestros hermanos. Vocoder não falta, lives do instagram feitos do palco (!) também não, e louvores emocionados às deusas pop Shakira e Britney Spears ("que se licenciou em liberdade e felicidade", congratula-se Will.I.Am) passam por aqui com fartura.

Ao vivo, este produto laboratorial, que os Black Eyed Peas não se cansam de promover, apelando ao seu usufruto em todas as plataformas de streaming, é maximizado com recurso a decibéis ensurdecedores, chamas disparadas em palco e muito empenho por parte de Will I.Am., Apl.de.ap e Taboo, acompanhados por J. Rey Soul, cantora que veio substituir Fergie, depois de Apl.de.ap a "descobrir" no "The Voice" das Filipinas, concurso no qual foi mentor. Todos juntos na frente do palco, com uma postura quase cartoonesca, desfilando pela passadeira ou com direito a slots individuais (Will I.Am. aproveita a sua para recordar três canções a solo), os norte-americanos apoiam-se ainda nos chamados "ombros de gigantes" para levarem a sua missão mais longe. Numa autêntica festa da citação, vive-se um espírito pós-moderno em que não importa de onde vem cada refrão, desde que o efeito seja só um: a loucura instalada na multidão de 63 mil pessoas (números da organização).

Se 'Ritmo (Bad Boys For Life)' traz 'The Rhythm of the Night', dos Corona, à Bela Vista, 'Mamacita' transporta ecos distantes de 'La Isla Bonita', de Madonna, e 'Pump It' parte do riff delirante de 'Misirlou', de Dick Dale (popularizada no filme "Pulp Fiction"). Para prolongar o êxtase, os músicos em palco dão um cheirinho de 'Seven Nation Army', dos White Stripes, e a todos estes estímulos os festivaleiros reagem com uma energia absurda, como se o som a vibrar no chão tornasse obrigatório cantar, gritar, saltar — tudo muito alto.

Na reta final do espetáculo, canta-se e implora-se: "Don't Stop the Party". Mas, mesmo que alguém quisesse fazê-lo, não seria possível: este é um comboio (TGV) desgovernado de êxitos próprios e alheios, encadeados sem paragens numa mistura de festa "revenge of the 90s" e impiedosa aula de aeróbica.

Depois de um discurso em louvor de Britney Spears e em prol do "amor e da positividade", os Black Eyes Peas deitaram os últimos foguetes de uma festa que de facto nunca abrandou. "The Time (Dirty Bit)", que parte do clássico '(I've Had) The Time of My Life", do filme "Dirty Dancing", para uma espécie de rave comandada pelo Crazy Fog, é o tiro de partida deste final, seguindo-se-lhe 'Where Is The Love?', o primeiro sucesso da banda, de 2003, que agora soa quase naïf, e a bizarria trilogia 'I Gotta Feeling' - 'Don't You Worry' - 'I Gotta Feeling'. O novo single, que já tinha sido tocado no começo do concerto, regressa ao palco na forma de vídeo com participação de Shakira e David Guetta, que a banda se senta no chão a ver no grande ecrã, "como uma família". Logo a seguir, e sob uma chuva de papelinhos brancos, regressa o maior sucesso dos Black Eyed Peas, para que a ninguém passe despercebida a semelhança entre a canção nova e um dos maiores hits do estranho século em que vivemos.

"Há muito tempo que queríamos tocar para tanta gente", confessa a certa altura Will.I.Am, lembrando que, em 2004, a sua banda atuou neste mesmo festival antes de Britney Spears, a princesa recentemente "libertada" a quem não se cansa de cantar loas. A avaliar pela receção da Bela Vista, o reencontro era igualmente desejado por este mar de gente que vingou no espetáculo dos Black Eyed Peas toda a solidão do confinamento.

Alinhamento:

Lets' Get It Started
Boom Boom Pow
Ritmo (Bad Boys For Life)
Mamacita
Don't You Worry
Pump It
Freestyle de will.i.am
Freestyle de Taboo
Mabuti/Bebot
This Is Love
#thatPower
Scream & Shout
Don't Stop the Party
The Time (Dirty Bit)
Where Is The Love?
I Gotta Feeling
Don't You Worry
I Gotta Feeling

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: LIPereira@blitz.impresa.pt

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