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NOS Primavera Sound: O rei de Gaia atravessou o Douro para celebrar o kitsch lusitano com toda a ternura

No último dia de festival, David Bruno abriu o palco Super Bock com canções de louvor a Gaia e arredores. E com uma revelação: "O Nick Cave foi a Miramar. Podia ter ido a Labruge ou Leça, mas foi a Miramar." Ali ao lado, os Dry Cleaning foram muito bem recebidos na sua estreia em Portugal

NOS Primavera Sound: O rei de Gaia atravessou o Douro para celebrar o kitsch lusitano com toda a ternura

Lia Pereira

Jornalista

NOS Primavera Sound: O rei de Gaia atravessou o Douro para celebrar o kitsch lusitano com toda a ternura

Rita Carmo

Fotojornalista

Com um pequeníssimo atraso causado por um problema técnico ("a vida é um problema técnico", resumirá sabiamente mais adiante), David Bruno entrou em palco de calção e camisa de veraneio, uma farpela colorida que pode ter sido comprada ontem ou herdada do seu pai. O rei de Vila Nova de Gaia, concelho cujas idiossincracias tem documentado com rigor de escrivão, atravessou uma das muitas pontes sobre o Douro para vir ao Parque da Cidade banhar-se na adoração dos seus seguidores. Não é exagero: o seu concerto, que abriu o palco Super Bock neste último dia de festival, foi certamente o único espetáculo do Primavera Sound onde dezenas de fãs gritaram nomes de localidades do Grande Porto. Miramar, Gondomar e, inevitavelmente, Mafamude, a freguesia que David Bruno imortalizou no brilhante "O Último Tango em Mafamude", foram palavras berradas em coro pela plateia, que assim ia tentando adivinhar o alinhamento da atuação que passou por aquela estreia de 2018 e também por "Miramar Confidencial", do ano seguinte, e "Raiashopping", de 2020, no qual o músico presta homenagem à região de Trás-os-Montes da qual é natural a sua família.

Com letras invariavelmente espirituosas, David Bruno acaba por fazer uma espécie de antropologia do kitsch nacional. Seria impossível a um artista de outro país traduzir esta portugalidade tão particular, onde cabem roulotes e bifanas, aldrabões encartados e corações partidos, caixas de praliné e "restaurantes simples onde cheguei a ver um casal a dar comida na boca um do outro. Eram papas de sarrabulho!", contou, como introdução de 'Mesa para Dois no Carpa', uma homenagem "a todos os restaurantes deste país que ainda servem refeições em travessas de inox!".

Dotado de uma curiosidade insaciável e de uma saudável capacidade de trabalho, David Bruno, que em 2021 lançou mais um disco ("Palavras Cruzadas", com Mike El Nite), trata as singularidades nacionais com muito carinho. O seu humor não é desdenhoso, mas sim ternurento, e talvez por isso tantos espectadores entoem a letra de 'Bebe e Dorme' ou 'Salamanca by Naite' - independentemente de virem de Lisboa, da Madeira ou das Caxinas (localidades postas a votação no mini-censos realizado durante o impasse da abertura).

Entre os solos de guitarra de Marquito e os beats e samples que David Bruno adora pesquisar, a festa de pré-pôr do sol decorre com estilo & suavidade. "Gaia! Gaia! Gaia!" é o coro que se ouve a certa altura, e que o nosso anfitrião tem de corrigir. "Gaia é um cântico muito genérico. Gaia tem tanta população como a Islândia, podia ser um país!", defende, com orgulho. E nada ilustra melhor a importância de um dos concelhos mais populosos do país como o facto de, segundo David Bruno, Nick Cave ter ido, aquando da sua passagem por este festival, a Miramar. "Podia ter ido a Labruge, podia ter ido a Leça, mas foi a Miramar", insiste, voltando à carga ao assunto em 'Bebe e Dorme', cuja letra adaptou para refletir o referido acontecimento. "Anda comigo ao Chez Maurice/Anda comigo ao Bar do Bano - como foi o Nick Cave", atalhou.

Emocionado com a receção, o DJ António Bandeiras, sidekick de David Bruno, subiu a uma das torres laterais do palco para ver a multidão lá de cima. E o seu "patrão" agradeceu aos fãs "demasiado gentis", que o acompanharam neste encontro gostoso.

À mesma hora que David Bruno espalhava a sua magia no palco Super Bock, uma outra festa tinha lugar no palco Cupra. Nos ecrãs gigantes, a imagem podia ser a preto e branco, mas os sorrisos dos Dry Cleaning tinham todas as cores do mundo. No seu primeiro concerto em Portugal, a banda de Londres foi muito bem recebida pela plateia já numerosa, e correspondeu a esse apoio com uma entrega a condizer.

Um dos grupos mais interessantes do fértil novo rock britânico, os autores de "New Long Leg", o seu único álbum, lançado no ano passado, movimentam-se pelos terrenos do pós-punk, sobre os quais assenta a voz, mais falada do que cantada, de Florence Shaw. Num tom entre a indiferença e o desdém, é a sua postura que distingue os Dry Cleaning das numerosas bandas do mesmo campeonato.

Voltando às aulas de português, diríamos que a jovem, de cabelo longo e sorriso algo envergonhado, é uma narradora omnisciente (ou seja, que tudo sabe), mas vagamente ausente. A mistura pode não ser nova, mas resulta e liga na perfeição com uma das frases que se destacam em 'Scratchcard Lanyard', a canção com que terminam o concerto: "do everything and feel nothing".

De mão no peito e semblante emocionado, Florence Shaw deixou o palco algo atordoada com o sucesso desta estreia dos Dry Cleaning em Portugal. Voltarão, esperamos e acreditamos, a tocar por cá.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: LIPereira@blitz.impresa.pt

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