Depois de Nick Cave and the Bad Seeds, senhores de mais um concerto feérico no (já um pouco deles) Parque da Cidade do Porto, a temperatura teria obrigatoriamente de ser diferente a seguir, para que as comparações não resultassem dolorosas. E assim foi: não sendo antítese do que quer que seja, os (também) australianos Tame Impala foram um 'filme' diferente no primeiro dia da edição de regresso do NOS Primavera Sound.
Partilhando com Nick Cave a honraria do lugar cimeiro no elenco do dia, a banda de Kevin Parker puxou dos seus galões de 'maverick' do rock e da pop psicadélica revista e atualizada para os anos 10 e 20 do século XXI e ofereceu ao maior espaço do festival portuense (extraordinariamente preenchido neste segundo cabeça de cartaz) o que nas últimas décadas do século passado se denominava, com pompa e vaidade, de espetáculo de luz e som. Dando muito jeito, neste caso, que o património dos Tame Impala seja composto por respeitáveis quatro álbuns que mostraram um caminho claro - não necessariamente uma evolução - do rock psicadélico tal como transformado pelos Flaming Lips, até à synth-pop, ao disco, ao R&B e ao soft rock com evidentes referências nos anos 70 e 80. Ou, por outras palavras, a estrada que os conduziu de "Innerspeaker" (2010) e "Lonerism" (2012) a "Currents" (2015) e "The Slow Rush" (2020). Ou de 'Elephant' a 'Borderline', ambas presentes no alinhamento desta noite, ambas tão distintas no seu imaginário, ambas - valha a verdade - tão Tame Impala.
A escala também conta. Há quase duas dezenas de projetores em palco à frente dos quais se posiciona a banda, um círculo luminoso que se acende mais adiante, a pairar sobre os músicos. Na maior parte do tempo vemos vultos, absorvidos pela miscelânea de cores (e animações projetadas) em palco, pagando-se a dívida ao psicadelismo nas cores saturadas e arrastadas das imagens que vemos nos ecrãs laterais.
No que ao som diz respeito, poucas vezes neste espaço (ou)vimos tão conseguida uniformidade na distribuição, com cada recanto a receber a mesma definição, ajudado certamente pelo desaparecimento do vento que se fez sentir pela tarde. A música ritmicamente estimulada dos Tame Impala, que tanto pode ser funk espectral 70s como synth-pop 80s ou bojudo vagão rock 60s (ainda que tudo sob diversos efeitos, com sons adulterados, procurando ser pouco cristalina) é oferecida com uma qualidade praticamente semelhante à dos álbuns de estúdio, evidência da preocupação e da minúcia de Kevin Parker enquanto desenhador de paisagens sonoras, enquanto geek da produção.
Num concerto que se viveu como viagem veloz, também visualmente, houve lasers para os céus do Porto e Matosinhos em 'Elephant' (single ainda hoje certeiro, à beira do qual o restante alinhamento da noite correria, noutras circunstâncias, o risco de parecer um tanto ou quanto brando), confetti e fumarada em 'Let It Happen', aquela pausa dengosa em 'Feels Like We Only Go Backwards'.
Económico em comunicação noutros concertos por cá (lembramo-nos do Optimus Alive, em 2013, ainda debaixo da luz solar), Parker mostrou-se hoje francamente entusiasmado com a vasta plateia que tinha à sua frente, dando-se mesmo a um exercício de memória descontraído, ainda que não exatamente bem-sucedido. "Este sítio é muito bonito. Acho que é a primeira vez que cá vimos. A Portugal não, claro. E também não ao Porto, caramba. Já cá tinha estado. Já disse que adoro o Porto três vezes. Ufa, acho que me safei desta, não? Da última vez que cá estivemos fomos à praia, não muito longe daqui. Vi aquela rede de pesca espantosa [a escultura "She Changes", conhecida vulgarmente como "Anémona", de Janet Echelman, localizada na rotunda a poucos metros do festival]". Este foi, na verdade, o primeiro concerto dos Tame Impala no Porto - as memórias de Parker provêm da estada na Invicta em trânsito de e para o festival de Paredes de Coura em 2015 - e pode dizer-se, em jeito de remate final, que para primeira vez não correu nada mal. A canção pode dizer que a sensação é de que só andamos para trás, mas esta banda ainda não parou de crescer.
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