Paulo Bragança: “Hoje é tudo muito assético, corretinho e limpinho. Se ser artista é isso, eu não sou artista”
Paulo Bragança
Rita Carmo
No momento em que se prepara para editar um novo álbum, dedicado às canções de Adriano Correia de Oliveira, Paulo Bragança fala à BLITZ sobre dois anos difíceis sem concertos, o regresso a Portugal depois de mais de uma década a viver fora e a amizade criativa com a artista plástica Joana Vasconcelos
Quando Paulo Bragança regressou a Portugal para ficar, há aproximadamente cinco anos, fê-lo com a determinação de recuperar uma carreira musical que, nos anos 90, o tinha transformado numa das mais aplaudidas novas vozes do fado. Depois de uma colaboração com os Moonspell, no álbum “1755”, em 2017, e da edição do disco “Cativo”, no ano seguinte, o cantor voltou a pisar palcos nacionais tanto em nome próprio quanto em festivais como Bons Sons ou Entremuralhas, tendo também participado no espetáculo de homenagem a António Variações, junto à Torre de Belém, no verão de 2019.
Meses mais tarde, com o país a fechar-se devido à pandemia, viu-se numa situação complicada e começa agora a fazer-se ouvir de novo. No momento em que prepara a edição de “Adriano80”, um álbum dedicado às canções de Adriano Correia de Oliveira, com edição agendada para 10 de junho, Paulo Bragança fala, em entrevista à BLITZ, sobre o que o une à voz de ‘Trova do Vento Que Passa’, mas também sobre os mais de dois anos sem concertos, a amizade criativa com a artista plástica Joana Vasconcelos e os ensinamentos de mais de uma década a viver na Irlanda. “Aprendi a ter muita paciência comigo”.
Este regresso agora com um disco dedicado às canções de Adriano Correia de Oliveira surge quatro anos depois de “Cativo”. O que aconteceu depois da última vez que o vimos em palco? Depois do concerto do Variações, em junho de 2019, fiz o concerto no Centro Cultural de Belém e fechou a barraca. Não houve mais nada. Houve, realmente, dia 13 de março, mas este 13 de março, no Teatro Vista Alegre, em Ílhavo.
Chegou a pensar em sair novamente de Portugal? Não havia maneira de fazê-lo... Para onde eu iria seria para a Irlanda, que será sempre, também, a minha casa, mas não havia hipótese. Nem meios para lá chegar, em termos de transportes, nem meios, meios. Não havia nada. Vi-me numa situação inacreditável, a ter de passar o Natal de 2020 na rua, na minha própria cidade. Dá que pensar. Mas pronto.
Como começou a sua ligação com a música do Adriano Correia de Oliveira e o que o fez, agora, pegar na música dele? Desde que me conheço que me lembro da música do Adriano. Sempre ouvi muito, por influência de família, do meu pai. O Adriano era uma constante, mesmo nos saraus que se faziam lá em casa, aos quais não assistia porque tinha de ir para a cama. Adormecia a ouvir aquelas palavras assim ao longe, que diziam tudo e não me diziam nada. Com 10 ou 11 anos não tens propriamente noção do que ele estava a dizer. Depois, revisitava-o a cada passo... Às vezes, dava por mim a entoar qualquer coisa e era sempre Adriano. Não cheguei agora aqui a 2022 e disse ‘vou fazer isto’. Porquê agora? Desde 25 de outubro de 2019 que não tive nenhum concerto. Foi muito tempo sem nada, um marasmo. Fazer um álbum de originais requer mais pessoas e mais tempo e o objetivo aqui é poder ter concertos. Então, pensei: ‘Adriano é uma coisa que já tenho’. Até porque nalguns concertos, como no do Avante e no do Fólio, cantei coisas dele.
Chegou a ele mais pelos fados de Coimbra ou pela música de intervenção? Pela música de intervenção não foi de certeza absoluta. É muito martelo, muita foice e muita coisinha assim, embora algumas façam todo o sentido. ‘A Noite dos Poetas’, um dos singles que saiu agora, é de facto incrível, a letra é belíssima, mas a questão de canção de intervenção causa-me um arrepio. Intervenção de quê? Intervimos desde que nascemos até que morremos. Ou então não estamos cá a fazer nada. É engraçadíssimo, é fantástico, porque se há tempo em que se devia intervir a torto e a direito, de raiz, esse tempo é agora. E ninguém intervém nadinha. Está tudo tão consoladinho com os Facebooks e assim e assado. Intervenhamos.
E como escolheu as canções que decidiu graver? Qual o critério? Não tive nenhum critério. São tantas, na lista. Foi mesmo aleatório. A ‘Minha Mãe’ foi porque era a capella e era mais prático. Como disse, o propósito disto tudo é voltar ao palco, porque preciso de trabalho. É o propósito da existência. Eu não tenho ninguém. Depois deste jejum todo tem forçosamente que haver trabalho. Para mim e para todos. Só que, às vezes, é mais todos do que eu. É como aquela história do George Orwell: todos os animais são iguais, mas uns são mais iguais do que outros. É uma maravilha.
A artista plástica Joana Vasconcelos assinou a capa do single ‘Minha Mãe’. Como é que isso aconteceu? Somos amigos há décadas. Nem sempre estamos juntos, e a pandemia afastou toda a gente, mas a Joana não está aqui muito longe de mim. Volta e meia passo no atelier dela e surgiu essa ideia, em conversa, num almoço. Eu às vezes ensaio lá, tenho uma ligação frequente com o atelier e até mesmo uma relação de trabalho com ela. Quantas vezes ela tem exposições lá fora e sou eu que vou fazer a parte musical. Aconteceu em Paris, em Bilbao, no Guggenheim, em Serralves, por aí fora.
Quando regressou a Portugal, depois de todos aqueles anos fora, como foi a sua reintegração no meio artístico? Ainda se lembravam bem de si? Isso é uma coisa impressionante. Lembro-me que aterrei no aeroporto e a primeira coisa que fiz foi dar um autógrafo. Fiquei completamente admirado. A integração aconteceu naturalmente, porque eu vinha fazer a colaboração com os Moonspell e, entretanto, de telemóvel em punho, comecei a contactar aqui e ali e, de repente, estava a fazer o Bons Sons, fui ao Entremuralhas... Foram 31 concertos. Não me senti nada estranho. Não senti que tivesse estado tanto tempo, 13 anos, fora do país.
Mas encontrou um cenário muito diferente... Isso, sim. Acho que ainda nem sei de tudo, porque depois começou o bicho aí a mexer e houve este hiato enorme. Ainda não acabei a investigação. Enquanto estive a fazer os concertos, não tinha mesmo tempo. Estava a tratar de tudo e era das 7 da manhã à 1 da manhã, a fechar a luz à hora certa para me obrigar a dormir. Depois foi este marasmo. Agora, estou a tentar erguer a minha vida e não tenho mesmo espaço para ouvir coisa novas, sentar-me para estudar. É assim que eu entendo o ouvir. Não passa por entretenimento. Agora, se a música que anda por aí é arte ou não...
Nos anos em que viveu fora, passou muito tempo sem cantar em público. Quando regressou ao palco, a sua voz ainda era um instrumento bem ensaiado? Era. É uma coisa impressionante. Constatei que basta eu estar de boa saúde para a voz estar de boa saúde. É uma coisa tão orgânica. Pensei que não seria assim, mas tive tempo de sobra para constatar. Aqui não há artista: isto existe pela voz, por este instrumento. Hoje é tudo muito assético, tudo muito corretinho, tudo muito limpinho. Tudo a seguir a via do romantismo, casados durante 20 anos e monogâmicos. Incrível. Fantástico. Lindos. Abençoados sejam. Mas eu não pertenço a isso. Se ser artista é isso, eu não sou artista. Mesmo. Sou um artesão.
Passou muito tempo a fazer outras coisas em locais onde ninguém sabia quem era ou que cantava, sequer. Que ensinamentos isso lhe trouxe? Aprendi a ter muita paciência comigo. Muita. Ter paciência comigo e saber que estou sempre a desvendar-me. Uma pessoa, um ser, está em constante movimento, como todos os elementos da natureza. Digo isto sem querer ser esotérico, detesto essas coisas todas. Aprendi a nunca me aldrabar, nunca me mentir. No outro dia, perguntavam-me “não tens medo?”. Mais depressa faço uma coisa se ela me der medo. Depois ou o medo se confirma e digo não ou venço-o e passo para outra. Ter saído de Portugal, daquela maneira... foi tudo tão caótico, mas foi para isso mesmo. Para estar em sítios que nunca pensei, fazendo coisas que nunca pensei em situações que jamais pensei. Isso tudo com uma lucidez que, às vezes, já me perturba e inquieta. Já não tenho muitas surpresas e, para mim, a lucidez tem que estar sempre a ferver, nunca pode estar permanente e perene, calminha.
Tem receio que esta guerra na Ucrânia leve a que a cultura fique ainda mais para último plano, quer a nível político quer na vida das pessoas? Porque é que tem que ser assim? Em situações limite, em abismos permanentes como os campos de concentração, também havia, assiduamente, atos culturais. Porque é que, por causa da guerra na Ucrânia, que é uma tragédia, uma infâmia... Fico logo a ferver. O homem é um monstro, aquilo não é um homem... Porque é que a cultura tem que ficar para último plano? Quando as pessoas viviam nas aldeias, sem televisão nem rádio, não deixavam de dançar nem de cantar. OK, não é o mesmo que ir ao cinema, isso é uma coisa urbana, mas é cultura, é daí que a cultura vem. É daí que ela se forma. Não deixava de existir e as pessoas não tinha meios alguns. Poderá não haver dez salas de cinema, poderá haver duas ou três, ou quiçá nenhuma, mas porquê? Porque é que temos de ser o parente pobre? É porque nós permitimos que uns senhores do governo, que somos nós que lá pomos, façam uma coisa dessas. Não pode. Porque é pão como o resto. No equilíbrio das coisas, do todo, se não houver um também não há outra. Eu não entendo uma vida que seja só trabalhar, trabalhar, trabalhar. A cultura é pão como o resto. Obviamente que não vamos todos comer cinema ou teatro ou poesia, mas faz muita falta. Ai faz, faz.