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James no Campo Pequeno: (Ainda) É como se fosse ontem

No seu regresso à capital e ao Campo Pequeno, os britânicos James trouxeram os temas clássicos costumeiros e algumas canções novas, para fazer as delícias de um público que continua, tantos anos depois, a ser seu. Tornado especial por ser o primeiro em dois anos sem a obrigatoriedade do uso de máscara, o concerto ficou marcado pelo obrigatório 'crowdsurf' de Tim Booth, pela presença em palco de Surma e, porque não dizê-lo, pela normalidade

Paulo André Cecílio, Rita Carmo

Quem passa diante do edifício onde se situava a antiga Haçienda, em Manchester, hoje transformado em bloco de apartamentos, depara-se de imediato com uma placa comemorativa onde se pode ler: "os James deram aqui o seu primeiro concerto, a 17 de novembro de 1982". Num espaço que, durante a sua existência, acolheu concertos de artistas tão díspares quanto Madonna, Oasis e The Prodigy, foi o epicentro da revolução acid house e, mais importante ainda, exportou a cultura de Manchester para o mundo, a homenagem aos James poderá soar algo bizarra. Mas é também testemunho de uma banda com uma longevidade impressionante, apesar de alguns acidentes de percurso – abuso de drogas, confrontos em palco, a saída de Tim Booth em 2001 para se aventurar por uma carreira a solo – e de nunca ter confirmado plenamente o estatuto que lhe era conferido nos anos 80: o de next big thing.

Sim, os James lançaram singles com algum sucesso: 'Sit Down' ou 'Laid' são disso exemplos. Mas são um caso estranho dentro destas manias pop. Demasiado independentes para serem estrelas mundiais, demasiado acarinhados para serem “apenas” uma banda de culto. São, ao mesmo tempo, sobrevalorizados e subvalorizados: a primeira porque não são extraordinários o suficiente para se situarem entre os maiores, não existindo por isso um motivo razoável para que tenham dado mais de 40 (!) concertos em Portugal (o que mereceria um estudo sociológico, da mesma forma que o carinho que os alemães têm por David Hasselhoff merece um estudo sociológico); a segunda porque, apesar da qualidade da música, são muitas vezes deixados de parte quando críticos elitistas (e todos os críticos são elitistas) dissertam sobre o cânone (e todos os cânones são elitistas) Madchester, elencando bandas como os Happy Mondays, os Charlatans, os Stone Roses ou os Inspiral Carpets em detrimento dos James.

Para seu proveito, Portugal, e os fãs portugueses, não se poderiam estar mais nas tintas para essas questões. É como se os James fossem uma espécie de símbolo nacional, tão apreciados quanto o pastel de nata, o vinho do Porto ou Fernando Pessoa. Seria de esperar que, dada a vasta oferta (ainda na quinta-feira tocaram no Pavilhão Rosa Mota, no Porto, e em julho estarão em Vila Nova de Gaia como parte do cardápio do MEO Marés Vivas), a procura não fosse tanta como o seria caso esta fosse uma situação virgem. Puro equívoco. Mesmo que não tenha esgotado, o Campo Pequeno encheu-se para uma vez mais testemunhar um espetáculo dos James na capital. Com o bónus de, horas antes, ter sido revogada a obrigatoriedade do uso de máscara em (quase todos os) espaços fechados. Resultado: centenas de pessoas de sorriso aberto, que entraram no recinto debitando as platitudes esperadas ("finalmente um concerto, que saudades!"), que celebraram aniversários em voz alta, e que se dedicaram – porque não dizê-lo – a outras normalidades rock, como tropeções alcoólicos e a procura de psicotrópicos. Para todas elas, este concerto dos James foi o primeiro dia do resto das suas vidas. A poucos dias do 25 de abril, soou a libertação.

Após um "boa noite, Lisboa!" dito em português com sotaque, cortesia do guitarrista Saul Davies (que há muitos anos escolheu a Invicta como casa), os James arrancaram com 'Johnny Yen', canção presente no seu álbum de estreia, “Stutter”, de 1986, e que provavelmente não foi a melhor escolha para um pós-pandemia – já que no primeiro verso se escuta algo como "Senhoras e senhores, eis a minha doença". Não que importasse: a doença, ao que parece, já lá vai, e o foco mediático está agora na guerra na Ucrânia, que mereceu uma referência por parte de Booth. Outra foi para o primeiro concerto que os James deram neste mesmo Campo Pequeno: "vocês partiram isto tudo"...

O amor entre os James e o público português já vem, reafirmamos, de longe. Esta noite tórrida de paixão em particular estava, porém, a começar. 'Waltzing Along', britpop pura e dançável, deu o mote, com a bandeira portuguesa pendendo dos teclados, e com o vocalista a começar um curto processo de um curto strip-tease: entrou em palco com um gorro e um casaco de inverno, e à quarta canção já estava com uma camisola fina e a lustrosa careca em evidência, dedicando-se aos seus movimentos típicos de dança como se esta fosse a primeira – ou a última – vez. Destaca-se sobretudo isso na prestação de Booth e dos demais membros dos James, e é algo que, calcula-se, venha a acontecer com todos os músicos que pisem um palco este ano: a alegria imensa de poder fazer o seu trabalho, após dois anos de férias forçadas.

À bastante aplaudida 'She's a Star' segue-se o pedido de Davies: "Lisboa, queres f... esta noite connosco?". O público responde afirmativamente, claro. E atingiria logo de seguida o orgasmo, mal se ouvem os primeiros acordes de 'Born of Frustration', canção que cumpriu este ano 30 de existência. Faltava no entanto algo: o contacto de Tim Booth com o seu público, algo que já o vimos fazer tantas e tantas vezes, num tempo que parece ter sido ontem. "Sabem que quero ir para aí, certo?". Sim, sabíamos. E essa tensão iria pairar no ar durante mais algum tempo, durante o qual Booth e Davies trocaram umas piadas privadas (o guitarrista foi apelidado de “Warren Ellis” depois de pegar no seu violino), levaram os presentes a lugares cósmicos com a spoken word de 'Wherever It Takes Us', e enveredaram por um momento chill out em 'Out to Get You', que de uma slide guitar maravilhosa passa para uma correria rítmica bojuda, dedicada aos que já tinham sede de algo que os fizesse suar.

'Hymn From a Village', escrita em 1984 e com as guitarras jangly que muito fizeram as delícias de quem nesses anos ligava a essa coisa a que hoje se chama de indie, cedeu lugar a um outro angelical de 'Many Faces', cortesia da guitarrista Chloë Alper. Até que chega 'Come Home' e tudo se altera. O medo dissipa-se, a dúvida vai dar uma volta. A tentação foi maior. Tim Booth aproxima-se do público e deixa-se agarrar, fotografar, abraçar; coronavírus dá lugar ao crowdsurf, máscara dá lugar a magia. Foi o ponto alto da noite, o corolário de dois anos para esquecer, o momento em que o rock n' roll voltou a ser o rock n' roll. Com 'Getting Away With It', logo a seguir, a exterminar qualquer torpor que ainda pudesse existir entre os presentes.

Para o final, os James guardaram 'Sometimes', não sem antes chamar Surma ao palco; a artista portuguesa, que fez uma das primeiras partes do espetáculo e que confidenciou a quem assina estas linhas que nunca tinha visto os James ao vivo até hoje, terá ganho ali a noite, ou até mesmo o ano. Um encore formado por 'Curse Curse', 'Ring the Bells' e a inescapável 'Laid' permitiu aos britânicos terminar em grande forma, perante o êxtase total de um público que sempre foi seu e que o continuará a ser, enquanto houver forças para tal. Já lá vão mais de 40 concertos. Se depender de nós, outros 40 se seguirão.

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