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101 canções que marcaram Portugal #85: ‘Sol de Inverno’, por Simone de Oliveira (1965)

Simone de Oliveira num pormenor da capa do single de 'Sol de Inverno', de 1965
Simone de Oliveira num pormenor da capa do single de 'Sol de Inverno', de 1965

65 anos depois, Simone de Oliveira despede-se dos palcos: é esta noite. Portugal mereceu Simone. Em 1965, o Luxemburgo vencia na Eurovisão com uma canção de Serge Gainsbourg. Por cá, ‘Sol de Inverno’ seria o preâmbulo da consagração de Simone. Hoje recordamos retalhos da vida da nossa diva maior, ícone de um país que passou a viver a cores e com um fogo posto. ‘Sol de Inverno’ é a 85ª de 101 canções que marcaram Portugal

Jorge Cerejeira

101 canções que marcaram Portugal é uma rubrica que visa homenagear as cantigas, os compositores e os intérpretes que marcaram a história da música portuguesa em Portugal. Sem ordem cronológica rígida, são um retrato pessoal (com foco na petite histoire) do autor. Mais do que uma contextualização e de um inventário de factos conhecidos, é sobretudo uma associação de estórias e de muitos episódios não registados. São histórias com estórias para além da música. Às vezes o lado errado das canções. Sobretudo o lado errado das canções.

‘Sol de Inverno’, Simone de Oliveira (1965)

Maria Eduarda não tinha alternativas: ou mentia a Carlos Eduardo, o seu amor à margem, assegurando que era Madame Castro Gomes, mas que estava disposta a fugir com ele para Itália antes que o seu ‘esposo’ regressasse do Brasil, ou assumia a condição de mulher-objeto, a soldo de um homem abastado como era Castro Gomes. Em todo o caso, Carlos Eduardo da Maia cedeu aos lamentos da sua (ainda sem o saber) irmã e pôde prolongar a sua felicidade por algumas semanas na ‘Toca’, a quinta nos Olivais que servia de abrigo a esse amor furtivo. Maria Eduarda foi o nome que Simone de Oliveira deu à sua filha, como tributo à personagem de Eça de Queirós de “Os Maias”, autor que, não só por isso, esteve presente em muitos episódios da vida de Simone de Oliveira. 100 anos depois da edição de ‘Os Maias’, em 1988, Simone apresentava o seu ‘Piano-Bar’, na RTP, que cruzava conversas e cantigas em bares emblemáticos de Lisboa; nessa época, foi-lhe diagnosticado um cancro – que Simone fez questão que não perturbasse os seus compromissos. Fez o ‘Piano-Bar’ até ao final, condoída.

‘Você não tem ontem de atriz para fazer essa peça’, disse-lhe Varela Silva em 1981. A peça chamava-se ‘A Tragédia da Rua das Flores’, um esboço (lá está, de novo) de “Os Maias” ou de “O Primo Basílio”, obra só disponibilizada em 1980 à revelia dos descendentes do mestre do Realismo em Portugal. Talvez não tivesse ontem de atriz para essa peça, não, mas foi lindamente e tomou embalo para décadas de representação – guardando (hoje) muito passado, muito ontem de atriz. Se Eça de Queirós tivesse assistido à peça encenada por Armando Cortez, no Teatro Maria Matos, teria com certeza dito, à saída, fumando uma cigarrete perfumada: ‘abarrota para aí de catita, chic a valer, esteve mesmo de apetite’.

‘Por uns olhos como os seus, faria qualquer coisa’, disse-lhe, no palácio de Cristal, no Porto, um homem certa vez – tinha Simone 20 anos. Fora já casada, tal como esse homem, e para o pai a sua vida tinha terminado – aos 20 anos. Fora já casada (só conseguiria obter o divórcio em 1974), mas do homem que lhe dissera ‘Por uns olhos como os seus, faria qualquer coisa’ haveria de ter dois filhos, antes de este embarcar para Moçambique e ter deixado Maria Eduarda, António Pedro e Simone entregues a uma vida que estaria longe de terminar. O pai de Simone, de ascendência belga, que lhe fizera ver que a sua vida estava terminada, foi quem, com pose severa e terna, lhe posou os braços nos ombros enquanto, no aeroporto, esta se despedia desconsolada do pai dos seus filhos – que embarcava numa vida errante. Durante muitos anos, Maria Eduarda e António Pedro tiveram registados nos seus documentos ‘filhos de pai e mãe incógnitos’ – que a intolerância conservadora do Estado Novo não se adequava à coragem de Simones.

Foi por esses filhos que, em 1969, semanas depois de ter tido a coragem de cantar os versos de Ary dos Santos ‘Quem faz um filho fá-lo por gosto’, vendeu brinquedos numa loja, foi locutora e jornalista – após ter perdido a voz. No ano seguinte, no Teatro Tivoli, no ano em que Sérgio Borges venceu o Festival RTP da Canção, entrou no Teatro Tivoli com pose de diva, com voz colocada (ainda que não pudesse cantar) e queixo levantado. As suas imagens do ano anterior, vestida de verde na Eurovisão, invadiam as paredes do teatro na Avenida da Liberdade. ‘Vá-se embora, Simone’, dizia o realizador Luís Andrade chorando. Mas Simone, não podendo cantar, estava ganhando subsistência como jornalista. E manteve-se até ao final – de queixo levantado, digna e imperial.

Muita vida tinha já tido Simone de Oliveira. No ano anterior, tinha cantado com raiva ‘Desfolhada’, a primeira canção da noite – e vencido destacada. ‘Vou ganhar esta merda’, pensou ao descer a rampa, vendo o seu companheiro na terceira fila de braço dado com outra mulher, como lhe tinham dito no camarim. Cantou com verve, colérica, revoltada, com um fogo posto – como se a letra de Ary tivesse sido escrita em prolepse. Passou a ser a Simone da ‘Desfolhada’, mas houvera outra Simone antes de ‘Desfolhada’ e outra Simone depois de ‘Desfolhada’. Antes de ‘Desfolhada’, tinha feito parte do binómio Simone-Madalena / Calvário-Garcia, disputando atenções e rivalidades. Artur Garcia foi o único que não venceu qualquer Festival RTP da Canção (escolheu mal o ano para levar o seu ‘Porta Secreta’ – no ano do magistral Eduardo Nascimento) e Simone de Oliveira a única que venceu duas vezes.

Em 1965, no II Grande Prémio TV da Canção, concorreram apenas os quatro rivais (repetentes de 1964). António Calvário vencera no ano anterior, de mãos implorantes a derramar a sua oração – e era altura de dar lugar a Simone, de dar lugar a uma grande canção. ‘Sol de Inverno’ é uma grande canção. Uma grande letra. Uma grande música. Que podia ter sido cantada por Frank Sinatra, Tony Bennett ou Bing Crosby. Mas foi cantada por Simone naquele Festival em 1965. Uma canção chic a valer, como diria Dâmaso Salcede (apesar de Eça de Queirós desprezar calhordas como a personagem que criara). Uma letra de um amor desencantado – apenas isso, sem conotações políticas. Mas lá que parecia, parecia. Em Nápoles, na Eurovisão (vencida pelo Luxemburgo com uma canção de Serge Gainsbourg), um jornalista perguntou, na conferência de imprensa, a Simone de Oliveira, se a ‘bandeira vencida, rasgada no chão’ era uma metáfora da batalha perdida contra Salazar por parte dos portugueses. Simone esquivou-se à pergunta – até porque ‘Sol de Inverno’ não era de todo um manifesto político. Jerónimo Bragança, o autor da letra, nunca fora homem de contestar o status quo. Jerónimo Bragança e Nóbrega e Sousa (compositor) eram criadores de grandes canções, de elegantes orquestrações. E ‘Sol de Inverno’ vivia – e tanto – dessa sublimidade de palavras, entoação, cadência e Simone.

Apesar de ter sido acusada de subversiva antes de Abril e depois de reacionária, Simone de Oliveira foi amada. Teve bem maior dose de reconhecimento e carinho do que de aversão e fel. Expôs-se. Nunca se escondeu atrás de cortinas. Absorveu a génese de Ary. De David Mourão-Ferreira. De Eugénio de Andrade. De O’Neill. Cantou a sua vida, a nossa vida, com alma de liberdade. Simone de Macedo e Oliveira retira-se dos palcos aos 84 anos, com 65 anos de carreira. Com muito que contar desde aquele dia, em 1957, no Centro de Preparação de Artistas da Emissora Nacional, em que, nunca tendo cantado em público, cantou um bolero e silenciou a sala. Ali nasceu Simone. Aquela que construiu um país musical com o seu nome: de sulcos na face, olhar vivo à Bette Davis e voz aberta.

Na sua despedida dos palcos, não há outra forma de nos despedirmos de Simone de Oliveira: Portugal mereceu Simone de Oliveira. Obrigado por este percurso. Respeitosamente.

Eu em troca de nada
Dei tudo na vida
Bandeira vencida
Rasgada no chão
Sou a data esquecida
A coisa perdida
Que vai a leilão

Ouvir também: ‘Prece’ (1984). Do álbum “Simone, Mulher, Guitarra”. Quando ouve fado, Simone está triste. Quando está triste, Simone ouve fado. Não estava triste então, mas este álbum compõe-se de fados que ouviu e de palavras que adaptou para o dialeto de Lisboa. A ‘Prece’, de Miguel Torga, que fecha o álbum, poderia ser um breviário da sua vida: Senhor, ergo-me do fim / Desta minha condição / Onde era sim, digo não / Onde era não, digo sim / Mas não calo a voz do chão / Que grita dentro de mim.

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