Blitz

101 canções que marcaram Portugal #83: ‘O Problema de Expressão’, pelos Clã (1997)

6 março 2022 14:30

Clã na foto da capa do álbum “Kazoo”, de 1997

Quase 30 anos depois, os Clã continuam a ser uma das mais consistentes bandas nacionais. Assentes no ecletismo musical de Hélder Gonçalves, firmaram o seu carisma na voz e figura de Manuela Azevedo. Foi ‘O Problema de Expressão’ a primeira canção a transformá-los em referência da pop portuguesa. É a 83ª de 101 que marcaram Portugal

6 março 2022 14:30

101 canções que marcaram Portugal é uma rubrica que visa homenagear as cantigas, os compositores e os intérpretes que marcaram a história da música portuguesa em Portugal. Sem ordem cronológica rígida, são um retrato pessoal (com foco na petite histoire) do autor. Mais do que uma contextualização e de um inventário de factos conhecidos, é sobretudo uma associação de estórias e de muitos episódios não registados. São histórias com estórias para além da música. Às vezes o lado errado das canções. Sobretudo o lado errado das canções.

‘O Problema de Expressão’, Clã (1997)

No início da sua carreira, Zé Pedro vaticinava a Kalú que os Xutos e Pontapés se iriam tornar na maior banda de rock portuguesa de todos os tempos. A premonição confirmou-se.

Os Clã não tinham fantasias tão magnificentes, mas tinham a convicção de que iriam perdurar por muitas décadas. Que tinham chegado à música para ficar – até porque a banda de Hélder Gonçalves tinha sido composta pelos melhores músicos que o guitarrista conseguira reunir, incluindo a voz invulgar de Manuela Azevedo. Manuela Azevedo era estudante de Direito em Coimbra e estava pouco convicta de que pudesse vir a dedicar-se em exclusivo à música – até pela pouca confiança que tinha na sua presença e sobretudo na sua voz. Estava pouco convicta também de que pudesse dedicar-se em exclusivo à advocacia – sobretudo quando um juiz conservador a expulsou da audiência quando cruzou as pernas inocente. Mas Manuela Azevedo tinha bem mais do que uma voz, apesar de rouca e ‘escangalhada’, como dizia. Tinha carisma, originalidade, souplesse. Extravasava-se em cima de um palco, em contraste com a sua personalidade reservada. Servia a linguagem extravagante e original dos Clã. Todos os músicos dos Clã lhe deram forma – à banda em si e a Manuela Azevedo.

Os Clã, tal como uma tribo que, no seu caso, tinham como objetivo criar raízes, perdurar, sempre seguiram a matriz da perfeição musical, de um pop-rock imaculado e elegante – ainda que assente na soul, no jazz e no hip-hop – mais criativo e complexo do que aquele que se produzia em Portugal em meados dos anos 90. Mostraram-se ao público em Janeiro de 1994, no bar Meia Cave, na Ribeira do Porto, e o seu primeiro álbum, “LusoQualquerCoisa”, remetendo para a diversidade que os guiava, passou nas rádios e na tevê; indiciou que os Clã poderiam ventilar a música portuguesa com outras atmosferas – mais dançáveis, com mais groove e com letras mais trabalhadas. Todavia, os convites para tocarem ao vivo não foram os esperados, as vendas pouco substanciais e augurou-se a sua elipse precoce – depois de um estimulante airplay. Mas os Clã eram compostos pela fibra do norte – mais substanciados na resiliência do que no conformismo; “LusoQualquerCoisa” tinha sido apenas um preâmbulo do muito que fariam nas décadas seguintes. Melhor: do que fariam logo de seguida com “Kazoo”. “Kazoo” era o álbum de uma banda madura. Foi o álbum que nos fez perpassar a cisma na sua linguagem nova e os assumirmos como personagens a quem permitíamos mexer na nossa vida. Apropriar-se do nosso quotidiano. Para expressar a nossa angústia e o nosso contentamento. É um álbum que captura a sua urgência de vitalidade, de obstinação em querer fazer bem, em querer fazer melhor do que tinham feito no álbum anterior. Com mais densidade e ossatura.

Os Clã não escreveram só canções. Escreveram-nos canções. Para cantarmos de olhos fechados uma letra (de Carlos Tê) que revolvia a nossa timidez na hora de dizer ‘Amo-te’. Na língua inglesa, qualquer patetice fica mesmo sempre bem; em português, qualquer exteriorização de intimidade assume-se como extravagante (afinal, todas as cartas de amor são mesmo ridículas). A Carlos Tê reconhece-se o dom para simplificar conceitos complexos e para complexificar conceitos simples. Mas a Carlos Tê reconhece-se sobretudo o mérito de as suas letras nos fazerem vibrar como cordas. E foi ‘O Problema de Expressão’, do álbum “Kazoo”, que nos fez começar a vibrar como cordas com os Clã. É uma canção intimista, envolvente, delicada e viciante, fazendo-nos sentir parte do elenco em que foi composta. Há vizinhança entre a letra de ‘Problema de Expressão’ e a nossa sensibilidade. 

A partir de então, os Clã souberam corresponder aos afetos que esperávamos deles. Seguiram-se muitos álbuns, muitas canções, muito boa lírica – quer dos elementos dos Clã, quer de Carlos Tê, quer de Regina Guimarães (poeta dos Três Tristes Tigres) ou de Sérgio Godinho.  Fizeram a música por que se sentiram estimulados – em escapes de inventividade, como uma catálise revigorante.

Depois de um percurso coerente e profícuo, em 2004 arriscaram fazer um álbum menos consensual, “Rosa Carne”. Tinham conquistado o direito de produzir canções menos intuitivas, mais densas. O resultado comercial, num tempo em que a venda de discos era ainda um income substancial, foi o esperado pela banda: não tão bem aceite pelo mainstream. Mas a carreira de uma banda sólida faz-se também de veredas e não só de trilhos retilíneos, agradando a um público transversal. O álbum “Rosa Carne” foi o seu capricho – a justificar a sua originalidade e provocação criativa. Nesse mesmo ano, Hélder Gonçalves e Manuela Azevedo foram convidados para integrar o projeto Humanos, recriando as criações não gravadas por António Variações – com parceiros musicais de boa cepa e passado firme. O álbum dos Humanos manifestou-se como o ângulo comercial que os Clã escolheram não ter em nome próprio. Apesar desse enviesamento, porventura sobretudo por esse enviesamento, a carreira dos Clã e de Manuela Azevedo tem-se feito de consistência. De entrega. De elegância. De sentido de humor. De, mais do que referência musical, de coerência musical. Passaram os últimos trinta anos a musicar a nossa vida – quer num registo pop quer num registo mais intimista. Temos crescido em conjunto e deveremos estar gratos por este percurso comum.

Devia ser como no cinema
A língua inglesa fica sempre bem
E nunca atraiçoa ninguém

Ouvir também: ‘Tira a Teima’ (2007)