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101 canções que marcaram Portugal #80: ‘O que é que a Baiana Tem’, por Carmen Miranda (1938)

Carmen Miranda / foto: Getty Images
Carmen Miranda / foto: Getty Images

Tinha um jeito que sempre dispensou tradução, um carisma sorvido da atmosfera do Rio de Janeiro. Cantava com os olhos, com as mãos, com as ancas. Nasceu no Marco de Canaveses, mas o exotismo com que arrebatou os Estados Unidos fez-se bem mais de Carnaval e de um português cantado com açúcar. ‘O que é que a baiana tem?’ é a 80ª de 101 canções que marcaram Portugal

101 canções que marcaram Portugal é uma rubrica que visa homenagear as cantigas, os compositores e os intérpretes que marcaram a história da música portuguesa em Portugal. Sem ordem cronológica rígida, são um retrato pessoal (com foco na petite histoire) do autor. Mais do que uma contextualização e de um inventário de factos conhecidos, é sobretudo uma associação de estórias e de muitos episódios não registados. São histórias com estórias para além da música. Às vezes o lado errado das canções. Sobretudo o lado errado das canções.

‘O que é que a Baiana Tem’, Carmen Miranda (1938)

A viagem não tinha sido uma festa, pá. Embarcara em Los Angeles trinta horas antes e aterrava agora no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro – depois de escalas na Cidade do México, em Bogotá, em Lima e em São Paulo. De duas em duas horas, a sua irmã Aurora dava-lhe um Seconal para que uma Carmen Miranda depressiva, apática e prostrada – um farrapo – conseguisse dormir. Horas antes, prevendo uma apoteose na sua cidade, Carmen tomou várias cápsulas de Dexedrine para conseguir acordar e tentar ser recebida com a dignidade que o seu povo merecia. Foi ao WC, vestiu um tailleur vermelho, prendeu o cabelo com uma fita da mesma cor e calçou sapatos pretos de salto alto. Quando as portas do avião se abriram, invertendo expectativas, Carmen estava inteira – exuberante, eufórica, estrelíssima – com os seus olhos verdes refletindo os flashes das câmaras fotográficas.

Há 14 anos que Carmen não pisava o solo do seu país. Desde 1941, dois anos depois de embarcar para os Estados Unidos, que estava sedeada em Los Angeles e a sua agenda nunca lhe permitiu parênteses para descansar. Ficaria 122 dias na terra que considerava sua e regressaria dali a seis meses, sim, mas envolta numa urna feita de bronze revestida da bandeira do Brasil.

Com dez meses, em 1909, saíra de Várzea de Ovelha, mas sofreu sempre o preconceito de ter nascido em Portugal. Aspirava a que o Brasil se despreocupasse com o seu lugar de nascimento – tal como a Argentina fizera com o ‘francês’ Carlos Gardel ou os Estados Unidos com o ‘russo’ Al Jolson. Mostrou(-se), todavia, que teria de parecer mais brasileira ainda – como uma compensação – e foi essa brasilidade que fez Carmen Miranda. Melhor: foi Carmen Miranda que fez o Brasil fora do Brasil. Dando cor a um mercado devotado ao Swing e às big bands.

Partiu para a Broadway e daí para Hollywood. Para os casinos. Para os maiores auditórios que o país maior conseguia acolher. Tanto dava ser brasileira, argentina ou cubana. Carmen Miranda era irresistível, apaixonante, carismática. Sustentava o seu encanto numa linguagem que os americanos entendiam há muito: a linguagem do talento e do génio. Como um paradoxo, a linguagem com que chegou à Broadway, ainda pouco exercitada no inglês, incorreta e risível, foi a que manteve até ao final da sua carreira. O público e os produtores insistiam que continuasse a errar as concordâncias e a pronunciar os erres latinos. Era, foi quase sempre, tida bem mais como uma personagem cómica, uma comediante de cinema que cantava, do que uma atriz ou uma cantora. Era uma soma de partes conjugadas em harmonia – como um quindim, um merengue, um doce-de-coco.

Cantava com os olhos, com as mãos, com as ancas. Carmen Miranda tinha um jeito que sempre dispensou tradução. Tinha um it, uma sagesse sorvida da atmosfera da Lapa, um je ne sais quoi tropical inebriante. Carmen Miranda nascera no Marco de Canaveses, mas o exotismo com que arrebatou os Estados Unidos, onde corporizou o seu percurso, fez-se bem mais de Copacabana, de Carnavais e de um português cantado com açúcar.

A Bananolândia é um estado que produz mais bananas do que consegue consumir. O primeiro-ministro desse estado sugeriu que a rainha fosse ao Rio de Janeiro vender o excesso da produção de bananas. A rainha chegou ao Rio de Janeiro em pleno Carnaval e embrenhou-se pelos cenários típicos de estados do Brasil. A Bananolândia foi o mote para Mário Lago e Braguinha escreverem “Banana na terra”, um musical carnavalesco de 1938, sendo Carmen Miranda, ainda a firmar carreira no Brasil, uma das grandes figuras. Com tudo a postos para rodar um filme em que a grande atração eram os números musicais, Ary Barroso, compositor de duas das canções mais simbólicas do filme, exigiu, à última hora, um pagamento extra de 50 dólares para ‘liberar’ as suas marchas; em uma delas, ‘Na baixa do sapateiro’, o cenário era uma rua da Baía – com lua, casario e coqueiros – já aprumado no estúdio. Porque a vida de Carmen Miranda foi um festival de acasos, o produtor do filme tinha passado nessa tarde na Rádio Transmissora e ouvira o baiano Dorival Caymmi a cantar ‘O que é que a baiana tem?’ acompanhado do seu violão.

Com a ‘nega’ de Ary Barroso, que o deixou ofendido, apressou-se a propor a Caymmi 5 dólares para que aquela sua canção fosse incluída na mais recente aposta da Sonofilms. Carmen tinha já preparado o outfit de baiana – que as negras e mulatas da Baía, habitualmente líderes do candomblé, usavam para acompanhar procissões ou venderem iguarias nas ruas, com batas, saias rodadas, colares, pulseiras e balangandãs (conjuntos de figas e amuletos). Caymmi, desiludido com a capital por falta de oportunidades e prestes a regressar à sua Baía, não só aceitou o desafio como contribuiu para demarcar Carmen Miranda das baianas já em voga (incluindo em Hollywood, ainda que como figurantes): sugeriu a Carmen, enquanto dançava, que apontasse para cada um dos adereços à medida que os ia enumerando na canção e sobretudo que revirasse os olhos – o que ajudou a moldar a sua sensualidade. A coreografia de ‘O que é que a Baiana tem?’ fazia ressalto com aquilo que era elementar perguntar: afinal, o que é que a baiana tinha? Carmen Miranda tinha tudo: olhos verdes, lábios carnudos, dentes perfeitos. O seu 1,52 m era compensado pelas sandálias com plataformas de 25 centímetros. Mas sobretudo tinha balangandãs. A baiana era enfim apenas um compère daquilo com que Carmen Miranda se quisesse enfeitar.

Dali a meses, ainda em 1939, estrear-se-ia na Broadway. A sua atuação de ‘O que é que a baiana tem?’ incendiou a plateia. Os seus olhos não brilhavam: faiscavam. A sua mise-en-scène em movimento tornar-se-ia a sua insígnia e fariam de Carmen Miranda um génio reconhecido e reclamado. Nos 15 anos em que esteve nos Estados Unidos, Carmen Miranda subiu ao palco uma média de 2,7 vezes por dia. Cantou ‘Mamãe, eu quero’ mais de 4.000 vezes. Dormia apenas duas horas por dia e cedo o corpo necessitou de estimulantes e calmantes para manter o seu foco.

Durante anos, foi a mulher mais bem paga dos Estados Unidos (porventura do mundo). Só em Hollywood ganhava 200.000 dólares por ano (valor que facilmente triplicava com as atuações em casinos e peças na Broadway) – num tempo em que um cachorro-quente custava 10 cêntimos, uma suite no Waldorf Astoria 10 dólares, um Cadillac 3.000 e uma casa em Palm Springs 15.000. Não viveu para desfrutar do que ganhou. O sucesso, como regra, foi-lhe funesto.

Trocaria ser Carmen Miranda pela condição de esposa tradicional enquanto Maria do Carmo, o nome com que foi batizada em Várzea de Ovelha. Mas a desdita determinou que o único que a pediria em casamento não condissesse com o seu padrão idealizado de homem bonito, alto, forte e limitado intelectualmente; o seu marido era um homem feio, baixo, coxo e astuto – que não amava e de quem não teve filhos. Assim, limitou-se a manter até ao final da sua vida uma existência mecânica e profissional.

No auge do seu sucesso, lamentava-se em Lisboa que Carmen só cantasse sambas. O que seria do fado se Carmen Miranda não soubesse cantar o samba? Certo dia, em Nova iorque, o Almirante Gago Coutinho foi até ao seu camarim e sugeriu-lhe: “Porque é que a menina não canta um fado ou um vira em vez de sambas? Em vez de ‘O que é que a baiana tem?’ porque é que não canta, por exemplo, ‘O que é que a menina do Minho tem?’”. Mas Carmen Miranda era brasileiríssima, carioquíssima, e gostava, mais do que o cantar, de ser o samba. Gostava de dizer ‘eu te amo’ em vez de ‘gosto de ti’ e muito menos ‘I love you’. Em todo o caso, poucos minutos antes de ser vencida por um enfarte fulminante, num convívio de amigos, a sua mãe, Dona Maria, pediu-lhe que cantasse um fado. E Carmen fez-lhe a vontade. Cantou ‘Uma casa portuguesa’. E a última canção que cantou, antes de se retirar, atirando beijos e sorrisos, foi ‘Fado da Severa’ (Na rua do Capelão / Juncada de rosmaninhos / Se o meu amor vier cedinho / Eu beijo as pedras do chão / Que ele pisar no caminho).

Se Carmen Miranda não soubesse cantar o samba, se Carmen Miranda soubesse cantar o fado, não teria sido Carmen Miranda. Só sabendo cantar o samba a fez, nos braços do público, nos braços do povo, viver um agitado Carnaval.

O que é que a baiana tem?
Só vai no Bonfim quem tem

Um rosário de ouro, uma bolota assim
Quem não tem balangandãs não vai no Bonfim

Ouvir também: ‘Taí (Pra você gostar de mim)’ (1930). Joubert de Carvalho entrou numa loja de discos – que tocava uma música de Carmen Miranda, que o compositor desconhecia. Confidenciou ao dono da loja que estava impressionado com aquela voz, que parecia estar a ver – pela emoção que imprimia àquela marcha de Carnaval – e pediu que, caso a cantora por lá passasse, lhe fornecesse o seu contacto porque queria muito conhecê-la. Nesse mesmo instante, como um acaso do destino, Carmen Miranda entrou pela porta da discoteca ‘Melodia’. O dono da loja exclamou: ‘Taí a nova cantora’. Dias depois, aproveitando esta exclamação, Joubert de Carvalho compôs ‘Taí’, que se tornou na grande sensação do Carnaval que estava à porta e uma das canções mais icónicas da carreira de Carmen Miranda. 

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