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101 canções que marcaram Portugal #79: ‘Parva que Sou’, pelos Deolinda (2011)

30 janeiro 2022 9:00

Deolinda

O hino de uma geração que, apesar de ser a mais bem preparada de sempre, parecia estar condenada a viver pior do que os seus pais. ‘Parva Que Sou’ foi a senha que substanciou a sua revolta, que resumiu a sua angústia e desapontamento pelos valores por que se lutou em (e pela) liberdade. A frustração passou a ser legendada por uma canção dos Deolinda, a 79.ª das 101 que marcaram Portugal

30 janeiro 2022 9:00

101 canções que marcaram Portugal é uma rubrica que visa homenagear as cantigas, os compositores e os intérpretes que marcaram a história da música portuguesa em Portugal. Sem ordem cronológica rígida, são um retrato pessoal (com foco na petite histoire) do autor. Mais do que uma contextualização e de um inventário de factos conhecidos, é sobretudo uma associação de estórias e de muitos episódios não registados. São histórias com estórias para além da música. Às vezes o lado errado das canções. Sobretudo o lado errado das canções.

‘Parva que Sou’, Deolinda (2011)

1964: promulgação da escolaridade obrigatória para seis anos, que vigoraria até 1986, ano em que foi alargada para nove anos. Em 2005, a escolaridade obrigatória passou a ser de doze anos.

Com a instauração da democracia, pondo fim aos 38 anos que perdurou a Segunda República, a educação passou a ser uma prioridade nacional. Os ciclos passaram a ser alargados e a perspetiva de ingresso na universidade passou a ser acessível a classes menos favorecidas. A norma ‘estuda para seres alguém’ manifestou-se todavia como uma quimera. Os anos 90 foram de pujança económica e formativa; a rede de universidades públicas e privadas floresceu. Não havia justificação para não se ‘ser alguém’. Porém, a partir do final dessa década, a sociedade teve de lidar com um excesso de licenciados (qualificados ou não / ajustados ou não às necessidades do mercado de trabalho) e a regra passou a ser uma classe de jovens diplomados com salários baixos, empregos incertos e/ou funções desajustadas da sua formação universitária. Expectativas goradas, pois. Estas expectativas poderiam ser um cliché: pior do que ser pobre é ser pobre com a perspetiva fracassada de não o ser. 

Em 2010, o governo de José Sócrates estava em agonia. Pressentia-se o seu fim, esgotada a retórica sedutora. Uma horda de jovens diplomados com ilusões diluídas perdera a paciência. Perdera? Nem tanto. Eram ‘filhos’ daqueles a quem Vicente Jorge Silva rotulara de ‘geração rasca’ – depois de se terem manifestado deseducadamente em 1994, opondo-se às provas globais. Defendia que mereciam ‘o tradicional par de tabefes com que antigamente pais e professores castigavam a má-criação de filhos e estudantes’. Mas esta geração de 2010, ao contrário da geração de meados dos anos 90, estava mesmo à rasca. Ainda que mais elegante, com menos verve – mas à rasca. E o pior ainda estava para vir em Abril de 2011, com o pedido de ajuda externa ao FMI, Comissão Europeia e BCE. Troika, subsídios e carreiras suspensos, subida do IVA, semblantes solenes de Passos Coelho e Vítor Gaspar – tudo o que se sabe por que passou Portugal três intermináveis anos. Mas naquele 2010 ainda não se pressentia que o cenário pudesse piorar.  

Sobretudo os jovens adultos precisavam de uma senha que substanciasse a sua revolta. Esse tema foi ‘Parva Que Sou’, dos Deolinda. Resumia a angústia desses jovens adultos – toldados por conformismo e falta de esteios orientadores das suas convicções ideológicas.

Já não havia Zecas, Godinhos ou Zé Mários que instigassem a sua luta. Mas havia os Deolinda, que descreviam a sua condição – ainda que em modo ordeiro. Em Janeiro de 2011, nos coliseus de Lisboa e Porto, estrearam esta canção. Ana Bacalhau disse os versos compenetrada, com os instrumentos a debitarem apenas o essencial para fazer sobressair o seu lamento e empatia para com quem atravessava, ali à sua frente, inquietude. O público começou por se rir das metáforas que Pedro da Silva Martins tinha escrito, mas no final não se conteve: levantou-se e aplaudiu emotivamente.

Ana Bacalhau sempre foi avessa a floreados vocais desnecessários; sempre fez balancear a sua amplitude e segurança na medida certa – para que os Deolinda sobressaíssem como um todo: música, palavra e encenação. Ana Bacalhau é bem mais a protagonista do que a vedeta. Os Deolinda escolheram-se. Fazem sentido como uma unidade. Com uma matriz de requinte e detalhe. São chiques e populares. Ouvidos tanto por gente com chinelos, mão na anca e bordões desbragados como pela elite de sapatos de camurça, peúgas garridas e gestos contidos. Situam-se entre o fado, a marcha popular, a pop acústica e o recital sofisticado. Nada de acessório, de cascalharia instrumental, de excessos a atenuar a insipidez. Tudo simples, detalhado, elegante.

Não inverteram quaisquer probabilidades. Dispuseram uma ‘mise en place’ criativa, comprometida e distinta, com os ingredientes certos em articulação certa. Os Deolinda fazem o sucesso parecer simples, como se tivessem seguido uma fórmula compendiada. Todavia, o seu sucesso não se fundamenta em elixires concretos. Fundamenta-se de passado. Do passado da Ana, do Pedro, do José e do Luís – que se escolheram. Das suas vivências e matrizes. De deambulações por Portugal e pelos seus valores mais arreigados. Da captação de ambientes castiços e civilizados. De muita música. De muitas artes. De muitas vozes e cambiantes inventivos. Animam-nos e comovem-nos. Fazem-nos ora trautear ora refletir. Dispondo críticas em forma de ironia. Ou tão só entretendo – que é enfim o que subsiste da música de que gostamos.  

Os pais deixaram de ter razão. Esgotaram os argumentos perante a frustração dos seus filhos. Aos Deolinda coube criar o cognome dessa frustração. A frustração passou a ser legendada com o nome da sua canção. Não é uma canção datada. Não é uma canção de intervenção, de incentivo à agitação. É antes uma canção de revolta. Intemporal. Desalentada. De desapontamento pelos valores por que se lutou em (e pela) liberdade.

Seguramente que a geração a que os Deolinda se referem, que os aplaudiu naquela noite fria de janeiro, há 11 anos, não conseguiram entretanto ter ímpeto para se revoltarem. Terão pouco mais horizonte do que há 11 anos. Os Deolinda terão todavia acicatado, com esta canção, a convicção de uma dignidade perdida. E essa convicção, não bastando, contribui para que estes jovens adultos possam ter o alento para a recuperarem.

Que mundo tão parvo
Onde para ser escravo é preciso estudar
Sou da geração “vou queixar-me pra quê?”
Há alguém bem pior do que eu na TV

Ouvir também: ‘Clandestino’ (2008). Do álbum de estreia “Canção ao Lado”. Lembra os contos de Miguel Torga, descrevendo a convivência entre contrabandistas e guardas republicanos na fronteira entre Portugal e Espanha. “A vida está acima das desgraças e dos códigos. Como esta vida é de noite que se vive, como a sua lavoura não é outra e a boca aperta, que remédio senão entrar na lei da terra.”