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Há 40 anos, o ‘boom’ ficava ‘hardcore’. 1982, um ano de ouro para a música portuguesa

Há 40 anos, o ‘boom’ ficava ‘hardcore’. 1982, um ano de ouro para a música portuguesa

Em 1982, as águas musicais portuguesas agitavam-se com muitas ideias. Nesse milagroso ano para a música nacional produziram-se discos que tiveram sucesso, discos que criaram descendência, discos que desafiaram as normas. Falamos de “Independança”, dos GNR, “Por Este Rio Acima”, de Fausto, o primeiro álbum dos Xutos, os segundos de Rui Veloso e dos Taxi, o quarto de José Mário Branco. Haverá colheita melhor?

De pés bem fincados em 1982, os Da Vinci de Pedro Luís e Iei Or (cantora que a mãe tratava por Maria Manuela) olhavam para a Lisboa do ano 10000 e garantiam que nesse tempo vindouro “a vida é um circulo mágico traçado no espaço”. Não indo tão longe, em 2022, a vida, em Lisboa e no resto do país, é uma confusão pandémica à espera de um rumo. Mas há 40 anos, a música portuguesa sacudia a água do capote do passado e piscava o olho ao futuro (que se estendia até ao ano 10000, pelo menos) numa série bem diversa de álbuns de onde saíram algumas obras-primas, um par de clássicos que ajudaram a definir os tempos e até – para algumas pessoas, pelo menos – títulos que a memória coletiva quase fez desaparecer, mas que são sempre possíveis de resgatar ao esquecimento.

Enquanto lá fora a Inglaterra se debatia com uma taxa cavalgante de desemprego (a maior desde a segunda guerra mundial…), o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos decretava que as reguadas iam contra a convenção dos Direitos Humanos (ideia que os professores e professoras em Portugal ainda demoraram um pouco a aceitar…), o filme Momentos de Glória brilhava nos Óscares e a Argentina invadia umas pequenas ilhas no Atlântico Sul dando origem à Guerra das Malvinas com o Reino Unido, por cá, nós todos bem: o Sporting de Jordão e Manuel Fernandes era campeão e nos grandes ecrãs era possível ver Luís Miguel Cintra a fazer de Venceslau de Morais, Zita Duarte de Francisca e Jorge Silva Melo de pintor n’A Ilha dos Amores de Paulo Rocha enquanto o PS festejava uma vitória clara nas eleições autárquicas.

Lisboa em 1982 / foto: Getty Images

Musicalmente falando, o mundo era algo diferente em 1982, mas ainda assim familiar: Ozzy Osbourne ia complementando a sua dieta com uma dentada esporádica na cabeça de um morcego e urinando onde podia, incluindo no Alamo, no Texas; os Grammys homenageavam Lennon premiando Double Fantasy, trabalho que gravou com Yoko Ono e que aí seria distinguido como álbum do ano; bandas tão diferentes quanto os A-ha, Garotos Podres, James, The Pogues ou Spacemen 3 davam os primeiros passos; e novos álbuns dos Bad Religion, B-52’s, Gang of Four, Huey Lewis and the News, the dB’s, Hanoi Rocks, Sister Sledge ou Smoley Robinson chegavam às lojas – e estamos só a referir-nos aos lançamentos de janeiro!

Obviamente, a pressão editorial no país que encarregou as Doce de levar “Bem Bom” à Eurovisão não era tão intensa. A nossa tabela de singles consagrou nesse distante ano “Never Again” dos Classix Noveaux como o mais avassalador êxito, com rodelas de sete polegadas de gente como Orchestral Manouevres in The Dark, Kim Wilde, Duran Duram, Secret Service, Paul McCartney com Stevie Wonder e F.R. David a instalarem-se nos lugares cimeiros do nosso Top 10 de vendas que, ainda assim, conseguiu resguardar espaço para dois sucessos autóctones: o “Patchouly” do Grupo de Baile que incluía uma notória referência a pilosidades púbicas e o dançante “Amor” dos Heróis do Mar.

Nos álbuns, a lista de 10 mais vendidos era algo distinta: com Emoções de Roberto Carlos à cabeça – que levou o país inteiro a cantar em uníssono premonitório  “seus netos vão-te perguntar em poucos anos / pelas baleias que cruzavam oceanos” -, The Visitors dos Abba, Avalon dos Roxy Music, Dare dos Human League e Cairo dos Taxi também ajudavam na faturação das centenas de lojas de discos que então existiam em Portugal – sim, porque isto de comprar discos em hipermercados ainda não acontecia, até porque o primeiro hipermercado ainda estava a um par de anos de distância da inauguração.

Recordamos 10 álbuns que a cena musical portuguesa legou ao futuro. E é até natural que um par deles ainda seja ouvido na Lisboa do Ano 10000 que tanto inspirou os Da Vinci. E quiçá mais além…

Táxi, “Cairo

“Nós tivemos uma noção muito clara da era excitante que estávamos a ajudar a despertar. Sentimo-nos no olho do ciclone, com tudo a acontecer ao mesmo tempo. Parecia que estávamos a viver um sonho: de um momento para o outro começou a consumir-se música portuguesa como nunca tinha acontecido antes”, explicou, há uns anos, João Grande à BLITZ, recordando o impacto que os Taxi registaram logo no arranque da carreira quando editaram, de rajada em dois anos seguidos, um homónimo álbum de estreia e este Cairo, que se impôs no Top 5 dos álbuns mais vendidos do ano em território nacional, graças à força new wave das suas canções, claro, mas também à originalidade da capa em lata de metal que imaginaram para o disco.

Sérgio Godinho, “Canto da Boca”

Quando chegou a Canto da Boca, Sérgio era já um veterano com mais de uma década de gravações nos ombros e uma discografia considerável que aí chegava ao sétimo título de originais, o primeiro lançado na PolyGram (hoje Universal), sucedendo a Campolide, que ainda tinha marca Orfeu. Neste novo álbum, Sérgio fazia-se acompanhar pelo pianista João Paulo Esteves da Silva, pelo percussionista António José Martins (que também assumiu, ao lado de Luís Caldeira, a produção), pelo baixista Fernando Júdice e pelo guitarrista José Carrapa, entre alguns outros músicos e vozes de apoio. E dava voz a alguns dos seus futuros clássicos: “Com Um Brilhozinho nos Olhos”, “É Terça-Feira” ou “Caramba” ainda arrebatam almas de cada vez que se fazem ouvir de cima de um palco.

Xutos e Pontapés, “1978-1982”

A estreia dos Xutos em álbum aconteceu com um disco que lhes reunia os primeiros passos e que foi dado à estampa pela Rotação de António Sérgio. E é justo dizer que as quatro décadas volvidas fizeram deste primeiro longa-duração da banda de Tim, Kalu, Zé Pedro, e, neste tempo ainda, de Francis, um depósito de autênticos hinos elevados aos píncaros elétricos à conta dos milhares de concertos que as décadas seguintes trouxeram: “Dantes”, “Quando eu Morrer”, “Viuvinha”, “Morte Lenta” ou “Avé Maria” sintonizaram toda uma geração com a vibração mais funda do punk. Ir para a escola com uma cópia deste álbum debaixo do braço era a maior afirmação de diferença que um miúdo de 13 ou 14 anos poderia fazer em 1982. Porque, sabem, “dantes, o tempo corria lento, meu”.

Fausto, “Por Este Rio Acima

Se Pedro Mafama corre Tejo abaixo em direção ao Atlântico em 2021 (e 2022…) é porque, há 40 anos, Fausto decidiu ir rio acima ao encontro de uma ideia de passado com um conjunto brilhante de canções. Era o sexto álbum em nome próprio de uma das vozes de Abril que procurava assinar um retrato do país a partir de um olhar sobre a sua história, contando glórias e tragédias em igual medida, num disco musicalmente ambicioso que incluía préstimos de Pedro Caldeira Cabral, Júlio Pereira, Rui Vaz, Rui Júnior, António José Martins ou Pedro Casaes – qualquer um deles um peso pesado dos nossos palcos e estúdios, mestres nos respetivos instrumentos, factos que contribuíram para a elevada fasquia que o cantautor aqui alcançou. E no alinhamento ficaram impressos vários moldes para o futuro: “O Barco Vai de Saída”, “A Guerra é a Guerra”, “Como Um Sonho Acordado”, “Por Este Rio Acima” ou, por exemplo, “Navegar, Navegar” eram temas que pegavam em diferentes modos e cadências tradicionais enchendo-as de mundo, de jazz e de outras tonalidades. O tempo, claro, não beliscou as intenções.

Rui Veloso, “Fora de Moda”

No título do seu segundo álbum, Rui Veloso não disfarçava a ironia: o músico que sempre discutiu abertamente a sua timidez foi, da noite para o dia, transformado em fenómeno e referência geracional graças ao impacto de Ar de Rock e, um par de anos mais tarde, procurava lidar com as dores de crescimento dizendo, logo a abrir, não querer ser estrela de rock and roll. Mas era. Com a fiel Banda Sonora (que além de Ramon Galarza e Zé Nabo também incluía António Pinho Vargas e Mano Zé) e equipado com as palavras de Carlos Tê, o homem de “Chico Fininho” refinava aí a arte de aproximar o pulso elétrico do nosso linguajar particular dando voz a temas como “A Minha Namorada Até Fala Estrangeiro” ou, bem mais a sério, “A Gente Não Lê”.

Banda do Casaco, “Também Eu

O grupo de António Avelar Pinho e Nuno Rodrigues não era brincadeira. Esses dois super criativos apontaram direções a gente tão diferente quanto António Variações, Heróis do Mar ou Doce e Rui Veloso, ajudando a empurrar a nossa música para este presente que agora conhecemos. Na Banda do Casaco, pode dizer-se, tinham o seu laboratório. Também Eu era o seu sexto disco, sucedia a No Jardim da Celeste de 1980 e antecipava o derradeiro registo, Com Ti Chitas, que sairia dois anos mais tarde. Nesse álbum, em que se escutava Jerry Marotta, o baterista e produtor americano que trabalhou com gente como Peter Gabriel ou Hall & Oates, brilhava também Né Ladeiras que garantia, logo na maravilha de abertura do álbum, ter uma das melhores vozes que a nossa música já conheceu.

GNR, “Independança

O arrojo do álbum de estreia do Grupo Novo Rock começava logo no título: Independança. As leituras poderiam ser variadas: proclamar a dança num país que musicalmente ainda vivia vergado pelo peso das palavras com que uma geração tinha construído Abril; dar vivas à independência quando se vivia em pleno debate da entrada para a Europa; afirmar, enfim, um carácter “indie” quando se assinava com a maior editora portuguesa. E essa independência existia, de facto: o grupo conseguiu meter no lado B do álbum uma experiência de estúdio que parecia inconsequente, mas revelava um alinhamento perfeito com experiências que chegavam de Londres ou Nova Iorque. E depois havia todas as canções que preenchiam o lado A do vinil: de “Agente Único” a “Independança” passando por “O Slow Que veio do Frio”, “Dupond & Dupond” ou, sobretudo, essa perfeita pérola pop que responde ao título “Hardcore”. Rui Reininho, Vítor Rua, Alexandre Soares, Toli César Machado e Manuel Megre cozinharam em Independança um verdadeiro OVNI sem real correspondência no panorama do então denominado “rock português”. E talvez por isso mesmo passaram ao lado do sucesso que já havia bafejado Rui Veloso e os UHF e que tocaria também os Taxi ou os Heróis do Mar. Nada que uma teimosia criativa não houvesse de resolver. Mas para a história ficou um álbum que cruzou rock e eletrónica, que afirmou uma ligação direta à new wave do estrangeiro e que de facto lhes garantiu o futuro que todos soubemos aplaudir.

José Mário Branco, “Ser Solidário”

Um génio é um génio é um génio. José Mário Branco vinha de longe, de muito longe, e muito passou para chegar a Ser Solidário. Estreou-se em nome próprio em 1971, com Mudam-se os tempos, Mudam-se as Vontades, e chegou a 1982 depois de lançar, em nome próprio, Margem de Certa Maneira e A Mãe. Reunido de músicos de topo – Júlio Pereira, Pedro Wallenstein, Zé da Cadela, Rui Cardoso… -, o mestre revelou toda a inquietação que lhe assaltava o espírito num disco sem mácula, de perfeita união entre as ideias e as palavras, entre as palavras e as melodias, entre as melodias e tudo o resto de que se fazem as grandes canções. E o futuro – este futuro em que agora vivemos – tudo deve a José Mário.

Telectu, “CTU Telectu”

Em 1982, uma consequência direta da ligação dos GNR à Valentim de Carvalho foi a edição deste álbum de estreia dos Telectu que nesta altura eram uma espécie de projeto alternativo da banda de Independança com Vítor Rua e Toli a trabalharem lado a lado com Jorge Lima Barreto. Trata-se de um disco de eletrónica experimental, inspirado na ficção científica de Philip K. Dick e nas mais avançadas propostas que chegavam dos lados do rock alemão. Oito temas que soam absolutamente singulares na mais vasta paisagem da música portuguesa da época. Foi reeditado recentemente e tudo!

Jáfu’Mega, “Jáfu’Mega

Depois da estreia com Estamos Aí, os portuenses Jáfu’Mega chegavam ao segundo álbum com um trabalho homónimo recheado de “bangers”: “Latin’América”, “Nó Cego” ou “Kasbah” traduziam o anseio de uma geração vibrar na sua própria língua. O grupo incluía os irmãos Barreiros, incluindo o baterista Mário, que tinham arrancado muito antes como Mini-Pop, e ainda o vocalista Luís Portugal. O sucesso do disco leva-os até Vilar de Mouros no mesmo cartaz que incluía os U2.

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