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101 canções que marcaram Portugal #83: ‘O Problema de Expressão’, pelos Clã (1997)

Clã na foto da capa do álbum “Kazoo”, de 1997
Clã na foto da capa do álbum “Kazoo”, de 1997

Quase 30 anos depois, os Clã continuam a ser uma das mais consistentes bandas nacionais. Assentes no ecletismo musical de Hélder Gonçalves, firmaram o seu carisma na voz e figura de Manuela Azevedo. Foi ‘O Problema de Expressão’ a primeira canção a transformá-los em referência da pop portuguesa. É a 83ª de 101 que marcaram Portugal

101 canções que marcaram Portugal é uma rubrica que visa homenagear as cantigas, os compositores e os intérpretes que marcaram a história da música portuguesa em Portugal. Sem ordem cronológica rígida, são um retrato pessoal (com foco na petite histoire) do autor. Mais do que uma contextualização e de um inventário de factos conhecidos, é sobretudo uma associação de estórias e de muitos episódios não registados. São histórias com estórias para além da música. Às vezes o lado errado das canções. Sobretudo o lado errado das canções.

‘O Problema de Expressão’, Clã (1997)

No início da sua carreira, Zé Pedro vaticinava a Kalú que os Xutos e Pontapés se iriam tornar na maior banda de rock portuguesa de todos os tempos. A premonição confirmou-se.

Os Clã não tinham fantasias tão magnificentes, mas tinham a convicção de que iriam perdurar por muitas décadas. Que tinham chegado à música para ficar – até porque a banda de Hélder Gonçalves tinha sido composta pelos melhores músicos que o guitarrista conseguira reunir, incluindo a voz invulgar de Manuela Azevedo. Manuela Azevedo era estudante de Direito em Coimbra e estava pouco convicta de que pudesse vir a dedicar-se em exclusivo à música – até pela pouca confiança que tinha na sua presença e sobretudo na sua voz. Estava pouco convicta também de que pudesse dedicar-se em exclusivo à advocacia – sobretudo quando um juiz conservador a expulsou da audiência quando cruzou as pernas inocente. Mas Manuela Azevedo tinha bem mais do que uma voz, apesar de rouca e ‘escangalhada’, como dizia. Tinha carisma, originalidade, souplesse. Extravasava-se em cima de um palco, em contraste com a sua personalidade reservada. Servia a linguagem extravagante e original dos Clã. Todos os músicos dos Clã lhe deram forma – à banda em si e a Manuela Azevedo.

Os Clã, tal como uma tribo que, no seu caso, tinham como objetivo criar raízes, perdurar, sempre seguiram a matriz da perfeição musical, de um pop-rock imaculado e elegante – ainda que assente na soul, no jazz e no hip-hop – mais criativo e complexo do que aquele que se produzia em Portugal em meados dos anos 90. Mostraram-se ao público em Janeiro de 1994, no bar Meia Cave, na Ribeira do Porto, e o seu primeiro álbum, “LusoQualquerCoisa”, remetendo para a diversidade que os guiava, passou nas rádios e na tevê; indiciou que os Clã poderiam ventilar a música portuguesa com outras atmosferas – mais dançáveis, com mais groove e com letras mais trabalhadas. Todavia, os convites para tocarem ao vivo não foram os esperados, as vendas pouco substanciais e augurou-se a sua elipse precoce – depois de um estimulante airplay. Mas os Clã eram compostos pela fibra do norte – mais substanciados na resiliência do que no conformismo; “LusoQualquerCoisa” tinha sido apenas um preâmbulo do muito que fariam nas décadas seguintes. Melhor: do que fariam logo de seguida com “Kazoo”. “Kazoo” era o álbum de uma banda madura. Foi o álbum que nos fez perpassar a cisma na sua linguagem nova e os assumirmos como personagens a quem permitíamos mexer na nossa vida. Apropriar-se do nosso quotidiano. Para expressar a nossa angústia e o nosso contentamento. É um álbum que captura a sua urgência de vitalidade, de obstinação em querer fazer bem, em querer fazer melhor do que tinham feito no álbum anterior. Com mais densidade e ossatura.

Os Clã não escreveram só canções. Escreveram-nos canções. Para cantarmos de olhos fechados uma letra (de Carlos Tê) que revolvia a nossa timidez na hora de dizer ‘Amo-te’. Na língua inglesa, qualquer patetice fica mesmo sempre bem; em português, qualquer exteriorização de intimidade assume-se como extravagante (afinal, todas as cartas de amor são mesmo ridículas). A Carlos Tê reconhece-se o dom para simplificar conceitos complexos e para complexificar conceitos simples. Mas a Carlos Tê reconhece-se sobretudo o mérito de as suas letras nos fazerem vibrar como cordas. E foi ‘O Problema de Expressão’, do álbum “Kazoo”, que nos fez começar a vibrar como cordas com os Clã. É uma canção intimista, envolvente, delicada e viciante, fazendo-nos sentir parte do elenco em que foi composta. Há vizinhança entre a letra de ‘Problema de Expressão’ e a nossa sensibilidade. 

A partir de então, os Clã souberam corresponder aos afetos que esperávamos deles. Seguiram-se muitos álbuns, muitas canções, muito boa lírica – quer dos elementos dos Clã, quer de Carlos Tê, quer de Regina Guimarães (poeta dos Três Tristes Tigres) ou de Sérgio Godinho.  Fizeram a música por que se sentiram estimulados – em escapes de inventividade, como uma catálise revigorante.

Depois de um percurso coerente e profícuo, em 2004 arriscaram fazer um álbum menos consensual, “Rosa Carne”. Tinham conquistado o direito de produzir canções menos intuitivas, mais densas. O resultado comercial, num tempo em que a venda de discos era ainda um income substancial, foi o esperado pela banda: não tão bem aceite pelo mainstream. Mas a carreira de uma banda sólida faz-se também de veredas e não só de trilhos retilíneos, agradando a um público transversal. O álbum “Rosa Carne” foi o seu capricho – a justificar a sua originalidade e provocação criativa. Nesse mesmo ano, Hélder Gonçalves e Manuela Azevedo foram convidados para integrar o projeto Humanos, recriando as criações não gravadas por António Variações – com parceiros musicais de boa cepa e passado firme. O álbum dos Humanos manifestou-se como o ângulo comercial que os Clã escolheram não ter em nome próprio. Apesar desse enviesamento, porventura sobretudo por esse enviesamento, a carreira dos Clã e de Manuela Azevedo tem-se feito de consistência. De entrega. De elegância. De sentido de humor. De, mais do que referência musical, de coerência musical. Passaram os últimos trinta anos a musicar a nossa vida – quer num registo pop quer num registo mais intimista. Temos crescido em conjunto e deveremos estar gratos por este percurso comum.

Devia ser como no cinema
A língua inglesa fica sempre bem
E nunca atraiçoa ninguém

Ouvir também: ‘Tira a Teima’ (2007)

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