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Segredos de uma audiência. Quando o Papa recebeu as guerrilhas das antigas colónias portuguesas

Segredos de uma audiência. Quando o Papa recebeu as guerrilhas das antigas colónias portuguesas
Keystone

Faz esta quarta-feira meio século que o Papa Paulo VI recebeu os líderes dos três movimentos de libertação das colónias portuguesas, inscrevendo esse dia 1 de julho de 1970 na história das relações entre Portugal e o Vaticano. A audiência durou apenas sete minutos, mas teve efeitos catastróficos para a política africana do então chefe do Governo português, Marcello Caetano, e quase levou à rutura das relações diplomáticas. Através do testemunho de participantes e da correspondência diplomática, reproduzimos o relato dos acontecimentos, que publicámos originalmente na Revista de 15 de abril de 1995

Com a chegada de Marcello Caetano ao poder, em setembro de 1968, as relações entre Portugal e a Santa Sé haviam-se distendido. O Vaticano encarava com expectativa benévola as promessas reformistas do novo chefe do Governo. Não sem razão: o principal atrito viria a ser superado em julho do ano seguinte, quando Lisboa pôs ponto final ao exílio do bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, que regressou, após dez anos, à sua diocese.

A manchar esta trégua político diplomática, despontava, persistente, a questão colonial. Em campo exprimiam-se orientações, crescentemente antagónicas, sobre a actuação da Igreja Católica nos imensos territórios de Angola e Moçambique. Desde há algum tempo que o Vaticano manifestava a disposição de «africanizar» a hierarquia, nomeando bispos negros para aquelas duas colónias. Um desiderato a que Lisboa sempre se opusera. Paciente mas firme, o Vaticano não desistiu. E a 10 de Março de 70, o «ministro» dos Estrangeiros, cardeal Agostino Casaroli, chamou o embaixador de Portugal na Santa Sé, Eduardo Brazão, a quem comunicou, «por cortesia», a nomeação, no dia imediato, do primeiro bispo negro da África lusófona: o padre Eduardo André Muaca, como bispo auxiliar de Luanda. O embaixador protestou energicamente. Argumentou, como escreveu num telegrama datado do mesmo dia, que «tentar-se criar na nossa África uma hierarquia negra (...) era provocar a destruição da obra de integração de Portugal».

Diplomata experimentado, com 29 anos de carreira e reputado «vaticanólogo», Brazão invocava os seus pergaminhos para aconselhar o Governo «a uma atitude firmíssima neste caso que reputo grave, de se abrir uma porta à criação de uma hierarquia católica negra no ultramar. Estou convencido que será uma `quinta coluna' que se vai fixar na nossa retaguarda». Se reconhecia que o Acordo Missionário, de 1940, permitia à Santa Sé a livre nomeação de bispos nas colónias, não deixava de enfatizar que «estamos em África num estado de guerra onde todas as leis de excepção são justificáveis».

O então ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Patrício (em primeiro plano), liderou pessoalmente toda a estratégia diplomática portuguesa
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Foi neste ambiente que o novo ministro dos Negócios Estrangeiros, empossado em Janeiro, foi recebido pelo Papa. À excepção de algumas escaramuças em torno de África, «não havia nenhum contencioso pendente» - recorda Rui Patrício. A audiência com Paulo VI (a primeira e única ao longo dos mais de quatro anos da gestão de Rui Patrício) decorreu a 25 de Maio. Nos termos protocolares, o encontro foi a sós. «Expus a Sua Santidade a nossa política ultramarina», conta o ex-ministro «Não me recordo de ter havido alguma palavra ou observação que reflectisse qualquer condenação ou mesmo recomendação sobre a política portuguesa em África. E também não falou dos movimentos de libertação.»

Na véspera, Brazão e Patrício juntaram ao almoço, na residência do embaixador, os principais dirigentes do Vaticano, todos cardeais: o secretário de Estado, Jean Villot, o seu substituto, Giovanni Benelli, Agostino Casaroli e Jacques Martin, prefeito do Palácio Apostólico. Presentes ainda, o cardeal José da Costa Nunes e o embaixador de Portugal em Roma, Hall Themido. Num telegrama datado de 26, Brazão fazia um balanço positivo da visita de Patrício: «Criaram-se deste modo os primeiros contactos directos, que me pareciam indispensáveis, entre o nosso Governo e a Santa Sé.»

A CONFERÊNCIA DE ROMA

POR essa altura, já estava em marcha a organização da Conferencia de Solidariedade com os Povos das Colónias Portuguesas. Realizada de 27 a 29 de Junho, em Roma, a iniciativa, dinamizada pelas três confederações sindicais italianas, constituiu um dos maiores sucessos políticos da guerrilha antiportuguesa.

À conferência compareceram as lideranças de três movimentos de libertação: o MPLA de Angola, a Frelimo de Moçambique e o PAIGC da Guiné e Cabo Verde, chefiadas, respectivamente, por Agostinho Neto, Marcelino dos Santos e Amílcar Cabral. A deslocação a Roma fora meticulosamente preparada. A ideia era aproveitar o ensejo para tentar um encontro com o Papa o que, a conseguir-se, constitui ria um inegável trunfo moral e diplomático. Com esse fito (e como mais tarde escreveu Aquino de Bragança, na revista «Afrique-Asie»), Marcelino dos Santos voara até Roma em Janeiro.

O assunto ficou nas mãos de Marcella Glisenti, presidente da Associação Italiana dos Amigos da «Présence Africaine», ligada à esquerda da Democracia Cristã, e que mantinha estreitas relações com os movimentos nacionalistas. «Ela teve um papel preponderante», lembra Marcelino dos Santos. «Foi ela quem tratou de tudo, no maior segredo, para evitar as obstruções que o Governo colonial-fascista de Portugal não deixaria de levantar.»

A 29 de Maio quatro dias após a audiência do Papa com Rui Patrício a senhora Glisenti dirige uma carta a monsenhor Frana, secretário do cardeal Benelli, o número dois do Governo vaticano. A missiva dá conta do desejo dos três dirigentes de prestar uma «homenagem ao Santo Padre», para o que a encarregaram de «pedir uma audiência». A carta traça um breve perfil de cada um dos três dirigentes, sem esquecer os cargos políticos e as formações religiosas de cada um (dois católicos e um metodista).

Dois dias depois, Marcella Glisenti recebe em mãos uma carta do arcebispo de Conacri, Raymond Marie Tchidimbo, dirigida a Benelli. A carta recomenda ao cardeal que dê seguimento ao pedido de audiência, «uma ocasião única» para o reconhecimento, pela Igreja, «dos justos direitos à dignidade e à autodeterminação dos povos africanos». A resposta do Vaticano é dada por escrito, a 30 de Junho. Amílcar Cabral, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos são avisados de que serão recebidos, em audiência privada, na Sala dos Paramentos, no dia 1 de Julho, pelas 12.15 horas.

«REZO POR VÓS»

No dia seguinte, uma quarta-feira, os três dirigentes chegam à referida sala ao meio-dia. Paulo VI entra meia hora depois. Não há imagens do encontro a revista «Note di Cultura» há-de explicar que um monsenhor português «expulsou o fotógrafo que se preparava, como era hábito, para documentar o encontro», motivo por que, comenta a mesma publicação, «a audiência não poderia ter sido mais privada do que foi». Sentado, o Papa fala lentamente em italiano. O diálogo é facilitado pela ajuda de um intérprete. A única versão conhecida da conversa é a que foi dada pelos guerrilheiros, a quem Paulo VI recomendou que «prosseguissem os seus fins através de meios pacíficos». O Papa entrega a cada um um exemplar da encíclica Populorum Progressio (cuja difusão fora restringida em Portugal, aquando do seu lançamento, em Março de 1967). O porta voz do grupo é Amílcar Cabral, que agradece e elogia o conteúdo da a encíclica papal. Ao despedir-se, Paulo VI segura a mão de Cabral e murmura: «Eu rezo por vós!» A audiência demorara sete minutos.

Vinte e cinco anos depois, Marcelino dos Santos recorda: «Demos uma informação sobre o verdadeiro sentido das lutas dirigidas pelos nossos movimentos, sublinhando que lutávamos pela paz, contra o crime perpetrado pelo regime colonial-fascista. Fizemos um apelo no sentido de Sua Santidade se empenhar para levar Portugal a compreender que era tempo de aceitar o direito dos povos que colonizava à autodeterminação e independência. O Papa respondeu-nos muito favoravelmente, com um nítido espírito de quem apoia o desenvolvimento das nossas lutas.»

A realização da audiência é divulgada à opinião pública no dia imediato, numa conferência de imprensa na livraria romana Paesi Nuovi situada junto ao Parlamento, que pertencia ao marido da senhora Glisenti, e que vi ria a publicar o texto integral da conversa com os jornalistas no seu boletim n° 9. Presentes, Cabral e Marcelino (Neto tivera de se ausentar de Itália). O moçambicano resume as circunstâncias em que decorreu o encontro, mas é o guineense que responde às inúmeras perguntas e faz a leitura política do evento: «Trata-se de um facto político de enorme importância, mas, antes de mais, de um facto moral (...) A autoridade máxima da Igreja não apoia nada que seja contra a paz, a liberdade e a independência dos povos (...) Estamos muito satisfeitos e pensamos que entrámos numa nova fase política da nossa luta.» Instada a esclarecer a qualidade em que a audiência foi pedida, Marcella Glisenti é taxativa: «Especificamente como líderes dos movimentos de libertação dos seus países.»

A notícia corre mundo. A razão é muito simples: era a primeira vez que um papa recebera representantes de movimentos nacionalistas, em guerra contra a respectiva potência colonial.

LISBOA CHAMA EMBAIXADOR...

A INFORMAÇÃO chega à embaixada de Portugal na Santa Sé na manhã do dia 2. «Ia jurar que foi o Dennis Redmont um jornalista americano casado com a Manuela Paixão quem nos comunicou», recorda Luís Quartin Bastos, ao tempo o número dois da legação. Correspondente da agência Associated Press em Roma, Redmont trabalhara dois anos em Lisboa, antes de se fixar em Roma, em 1967. «Conhecia muito bem o embaixador Brazão e o Quartin Bastos e quando soube da notícia, contactei com a embaixada», conta Redmont, que continua em Roma, onde é o director da AP para a Europa do Sul.

Estupefacto, Brazão apressa-se a contactar telefonicamente o Palácio das Necessidades, tendo exposto o sucedido a Rui Patrício. A gravidade do assunto leva o ministro a S. Bento, para uma conversa com o chefe do Governo. «Discutimos o assunto», refere Rui Patrício, «e decidimos tomar de imediato uma atitude enérgica.» Por um lado, apresentar uma nota de protesto ao secretário de Estado do Vaticano; por outro, chamar a Lisboa o embaixador junto da Santa Sé gesto que, sublinha Patrício, «significa, na linguagem política e diplomática, uma forte manifestação de desagrado e de protesto».

Rui Patrício prontamente transmite estas instruções são por telefone a Eduardo Brazão. A meio da tarde, a embaixada recebe das Necessidades o telegrama cifrado n° 12, com a classificação de «muito urgente» e «secreto», confirmando as instruções telefónicas. A nota de protesto deveria salientar a «nossa grande mágoa» perante «a audiência que o Santo Padre acaba de conceder aos dirigentes dos movimentos terroristas antiportugueses mais extremistas de comprovada filiação comunista». O telegrama ordenava ainda ao embaixador que comunicasse «verbalmente ao Secretário de Estado» que fora chamado a Lisboa pelo Governo «e que ficamos aguardando explicações sobre uma atitude cujo significado não podemos entender».

O telegrama chega à embaixada no preciso momento em que Brazão é recebido pelo cardeal Villot. Nos termos do relato enviado para o MNE, o embaixador disse ao chefe do Governo da Santa Sé «que ia cumprir a mais dolorosa missão» da sua já longa carreira. O cardeal ficou «visivelmente perturbado e surpreendido», numa reacção aparentemente sincera, que demonstrou, «mais uma vez, que o Primeiro Ministro do papa, francês de nacionalidade, desconhece os actos mais graves de uma política manejada pelos seus subordinados italianos».

Em obediência ao mandato de Lisboa, Brazão faz entrega da seguinte nota de protesto: «Eminência Reverendíssima, o meu Governo, tendo sabido que o Santo Padre recebeu ontem três dos cabecilhas do movimento terrorista que de há dez anos a esta parte tem procurado destruir a obra de integração e de promoção social e humana nos territórios das nossas províncias africanas, levando a morte e a destruição nas limitadas zonas onde têm podido penetrar, lamenta profundamente que tal tenha sido possível. Respeitosa mas firmemente, o Governo português protesta contra um acto que considera atentatório da dignidade do seu país e de intromissão nos assuntos internos dum Estado livre.»

A rematar, Brazão comunica que o seu governo «estava na disposição» de o chamar a Lisboa «declaração que ainda mais perturbou o Cardeal Villot». O secretário de Estado, por seu turno, admite que «achava também estranho tudo o que eu lhe contava, pois assistiu no Uganda ao cuidado que o Santo Padre tivera para não ferir de qualquer modo o nosso país».

A terminar, Villot assegura «que ia falar imediatamente ao Pontífice».

...QUE DISCORDA DA DECISÃO

CUMPRIDA a espinhosa missão de que fora incumbido que lhe custara tanto mais quanto, como acentua Rui Patrício, «era um homem muito religioso e devoto, com uma veneração extrema pela Igreja Católica» —,Brazão reflecte sobre o caso. Pela sua memória de historiador perpassam, cronologicamente, as várias crises entre Portugal e a Santa Sé. A sua sensibilidade de diplomata diz-lhe que Portugal perdeu todos os braços-de-ferro em que se envolveu. Quanto mais pensa, mais se convence que há que evitar passos em falso. Diplomata senior, com autoridade na matéria e íntimo de Marcello Caetano (de quem era, aliás, compadre), Eduardo Brazão decide-se a passar ao papel as suas reflexões e preocupações. É já noite de 2 de Julho quando a embaixada emite um aditamento ao anterior telegrama, com «alguns comentários, aliás os mais respeitosos, à decisão do Governo de me chamar».

Brazão começa por sublinhar que «esta atitude do Pontífice de receber, ainda que em audiência semireservada, os três bandidos que têm capitaneado os terroristas africanos não deve ter sido medida na sua real importância». Em sua opinião, sustentada pela ignorância revelada por Villot, «o Papa foi levado a fazê-lo por alguém que procurou dar-nos uma estocada pelas costas». Pondo em causa a estratégia delineada por Lisboa, o diplomata observa que, «nesta altura, o chamamento dum embaixador, preliminar normal de um corte de relações, é praticamente dar ao Governo da Igreja mão livre em Portugal e nas Províncias Ultramarinas ».

Brazão discorda da decisão. Argumenta com a História, que, a seu ver, mostra que, no plano político, a Igreja «só se combate pela firmeza e mansidão». Em contrapartida, «a polémica e os insultos, as atitudes espectaculares só redundam, ao fim e ao cabo, no recuo da posição do respectivo Governo que assim procede».

O embaixador concorda no entanto com o protesto: «Parece-me que foi indispensável definiu nitidamente a nossa posição.» Sugere agora um compasso de espera: «Há que esperar pela reacção do Papa e do seu Governo.» Embora discorde, o embaixador, obediente, promete «cumprir lealmente as instruções que receber».

O «OSSERVATORE» ESCLARECE

APESAR das reticências de Brazão, Caetano e Patrício mantêm a decisão. No dia 3, a chancela ria notifica o Vaticano do chamamento do embaixador a Lisboa, ao mesmo tempo que acredita Luís Quartin Bastos como encarregado de negócios.

No mesmo dia, o Vaticano tenta apaziguar os ânimos e faz publicar no «Osservatore Romano» uma nota que visa contrariar a versão publicada na Imprensa italiana (e não só) sobre a audiência. «O Papa, pela sua missão, recebe todos os que pedem para ter o conforto da sua benção», diz o jornal oficial da Santa Sé. «Assim aconteceu» com os rebeldes em causa, «que, no enquadramento estritamente religioso da audiência geral semanal, puderam aproximar-se dele.» Acresce que o tema abordado não foi de ordem política: «O Santo Padre dirigiu-lhes palavras de saudação e exortação de fidelidade aos princípios cristãos em que foram educados.» O Vaticano faz crer que não foi uma audiência particular nem especial e que apenas teve um carácter religioso.

Ao fim da manhã, o cardeal Villot chama o embaixador. À entrada, Brazão cruza-se com o cardeal Dino Staffa, prefeito do Supremo Tribunal da Assinatura Apostólica e «amigo de Portugal», que confessa estar «'addolorato' com o que se passara» e recomenda ao diplomata que «protestem». O encontro com Jean Villot destina-se a transmitir a reacção de Paulo VI à nota de protesto. Segundo o relato de Brazão, «o Papa estranhava a expressão `intromissão nos assuntos internos de um Estado livre', pois que, como Pastor Universal, o seu objectivo é abraçara todos e chamar sobretudo os mais afastados. O seu desejo é de que cesse a violência».

Villot atesta ainda que Paulo VI «deplorava profundamente a mágoa que nos teria causado». Brazão, que à hora da audiência com Villot (12h45) ainda não sabia da nota do «Osservatore Romano», riposta afirmando que não lhe parecia que o seu governo «se satisfizesse com tais declarações ditas ali no seu gabinete e sem testemunhas». Haveria, pois, que desfazer a «impressão» deixada no grande público de que o Papa «reconhecera e abençoara a obra desvastadora dos terroristas ». Brazão suplica a Villot «que interviesse com a sua autoridade», ao que este «prometeu interceder».

Este foi o último telegrama enviado por Brazão, que no dia seguinte tomou um avião da Alitalia para Lisboa. É ao fim desse mesmo dia, 4 de Junho, que o Governo português levanta parcialmente o «blackout» informativo sobre o assunto, distribuindo uma nota oficiosa do MNE com a sua versão dos acontecimentos. Um comunicado em que se vê forçado a justificar a censura imposta durante três dias: «Perante a extrema gravidade de tais notícias, entendeu o Governo não dever perturbar a consciência dos portugueses antes de serem esclarecidos os factos.»

DE GRAVADOR EM PUNHO

EM LISBOA, Eduardo Brazão é recebido pelo Presidente da República, Américo Tomás, e pelo chefe do Governo. Marcello acompanha o caso pessoalmente, informando-se amiúde junto de Rui Patrício. Este avista-se por duas vezes com o núncio apostólico, José Maria Sensi. «Foram diálogos duros», conta o então ministro. «Uma das vezes fui eu que o chamei às Necessidades; outra vez, foi ele que pediu para ser recebido. Manifestei ao núncio a indignação do Governo e do povo português pela atitude de Sua Santidade, que nos causou a maior surpresa e entrou em contradição com o que nós esperaríamos.»

A posição do Governo não colhe a unanimidade das opiniões. Há quem partilhe das preocupações de Brazão e estime que se foi longe de mais. Como também há quem proponha uma atitude mais radical. Quem? «A extrema-direita», responde Rui Patrício, dando como exemplo a posição assumida pelo general Santos Costa, o ex-ministro da Guerra e da Defesa, um dos duros do salazarismo. Fora da esfera diplomática, os contactos são mantidos por Marcello. Incluindo com os mais altos dignitários da Igreja portuguesa. «Nisto como noutras coisas, os bispos estavam divididos», refere Patrício, que não adianta nomes. «Pelos comentários privados que se ouviam, percebia-se que nem todos estavam de acordo.» Os correspondentes estrangeiros reportam que o cardeal se Cerejeira mostrava seriamente ressentido com o Papa e, por tabela, com o núncio.

À frente da embaixada fica Quartin Bastos. No Vaticano desde Fevereiro de 68, o diplomata conhece os códigos e os ritos da casa. Sabe que, quando há assuntos espinhosos, o Papa costuma aproveitar a homilia dominical para os abordar. É assim que no dia 5, Quartin instala-se na Praça de S. Pedro «levei um gravador de mão e escolhi a posição que me pareceu mais adequada, para gravar uma eventual palavra do Santo Padre». Esforço inútil «nem uma palavra sobre o assunto».

Se o Papa se manteve silencioso, o mesmo não aconteceu com a Rádio Vaticano. A secção de língua francesa difunde um comentário pouco favorável aos interesses portugueses: «A pacificação - ou a libertação pelas armas, conforme o lado onde nos encontremos - é fonte de miséria e de morte (...) Possam Angola, a Guiné e Moçambique conhecer, finalmente, a paz na justiça.» Em compensação, no dia 7 são assinaladas várias inscrições murais («Viva il Portogallo»), em Roma e na própria Praça de S. Pedro. Há quem diga que foram católicos tradicionalistas, feridos com o Papa; menos ingénuo, Quartin reporta para o MNE que pensa «tratar-se antes da iniciativa de adeptos do partido de extrema-direita MSI, que explora os acontecimentos a favor das suas finalidades políticas».

AUDIÊNCIAS COM CASAROLI

EM LISBOA, a nota do «Osservatore» é julgada insuficiente. Isso mesmo é dito, de forma particularmente clara, ao núncio apostólico; sem um esclarecimento cabal do caso, o embaixador permanecerá em Lisboa. Nos meios políticos especula-se mesmo com a hipótese de um corte de relações - um cenário de que se faz eco a grande Imprensa internacional. Num crescendo de pressões e expectativas, a Presidência do Conselho anuncia uma comunicação ao país para a noite de dia 7. Informado desta intenção, o núncio transmite-a ao cardeal Casaroli.

Às 13h30 de dia 7, o «ministro» dos Estrangeiros convoca Quartin Bastos, que entretanto recebera instruções de Lisboa. «Creio que foi o próprio Rui Patrício quem me falou ao telefone. Disse-me que o prof. Marcello Caetano tinha dois discursos preparados para essa noite. A primeira era uma versão optimista, de desanuviamento; a segunda era um texto frio e ríspido, de acentuação do conflito.» A opção final dependeria de como as coisas corressem até lá.

Ao princípio da tarde, Quartin chega ao Vaticano. «Era um dia típico do Verão romano, quentíssimo», recorda o diplomata. «Comecei por esperar uma boa meia hora numa biblioteca, sem que me tivessem servido um copo de água». Finalmente, o cardeal apareceu. «Meu filho!» cumprimentou-me, de braços abertos. Depois, contou-me a versão que o Vaticano pusera a correr: os três dirigentes estavam na audiência geral, destacaram-se e foram ter com o Papa, a quem pediram a benção; Paulo VI nem sabia quem eram.»

Quartin, que não era propriamente um novato, pede ao cardeal «para passar aquilo a escrito». Aparentando alguma indignação, Casaroli atalha: «Não lhe basta a minha palavra?» O encarregado de negócio jura que sim, mas invoca instruções de Lisboa. O cardeal retira-se. «Esperei mais meia hora, até que apareceu com um papel escrito à máquina, com a referida versão, mas sem assinatura nem carimbo. Julgava com certeza que eu era inexperiente...»

Quartin faz notar que o documento não possui qualquer valor e que o Governo está cada vez mais impaciente. O homem da Cúria volta a abandonar a sala. A tensão faz subir ainda mais a temperatura. «Acho que só nessa altura é que me trouxeram um refresco...» Casaroli retoma com um novo texto: uma folha com o clássico timbre «Secretaria de Estado de Sua Santidade» e com as armas pontifícias. «Assim está melhor», comenta, satisfeito, o português, «mas eu preferiria levar também a assinatura do cardeal Jean Villot». Ríspido, o prelado informa que o secretário de Estado «está indisponível de momento». Quartin não desiste: «Mas eu posso esperar!» O cardeal, agitado, promete fazer o que for possível e contactar a embaixada logo que tenha novidades.

O Encarregado de Negócios volta a encontrar-se com Casaroli pelas 19 horas. O texto, já rubricado pelo cardeal Villot, tem urna pequena alteração gramatical, que merece a concordância do português. Este, no entanto, repara que ao documento falta o carimbo. Casaroli chama um colaborador, a quem ordena que sele o texto. O cardeal solicita que o Governo não divulgue imediatamente o documento, mas não se opõe à sua citação por Marcello Caetano. Satisfeito, Quartin despede-se do ministro dos Estrangeiro e deixa o Vaticano. «Fui a correr para a embaixada. Estava-se quase em cima da hora da comunicação ao país; como não tinha tempo para telegrafar, telefonei para o Ministério» a dar conta do êxito da missão.

O comunicado do Vaticano afirma, logo a abrir, que «não se tratou de uma audiência no sentido próprio do termo». Expõe em seguida a sua versão: «No quadro dos encontros de carácter geral que, na sua qualidade de Pastor Universal, Sua Santidade tem com inúmeros grupos de católicos e não católicos, das mais diversas proveniências, o Santo Padre entendeu não poder opor uma recusa absoluta ao pedido de um breve encontro que lhe chegou da parte do grupo de pessoas de que se trata. Fê-lo pela forma mais simples, mais discreta e menos significativa que possível fosse: não na Basílica de S. Pedro, onde se realizava a audiência geral, mas numa sala de passagem, quando regressava, terminada a audiência; sem referência à qualificação política que as ditas pessoas se atribuíam, mas como católicos ou cristãos, tal como tinham sido apresentados no pedido». A nota assinala ainda que o Papa «ficou surpreendido e amargurado pelo facto de a Embaixada ter enviado uma nota de protesto, e em especial pelo indevido significado atribuído à audiência».

MARCELLO FALA AO PAÍS

ÀS 22 horas, Marcello Caetano surge em directo na televisão. A face é sisuda e o tom solene: «Ao anunciar que hoje falaria pela rádio e televisão, julguei que seria uma das mais longas e mais graves conversas em família que até aqui tenho tido. Felizmente os acontecimentos evoluíram de tal modo que me limitarei a curta comunicação.» Numa alusão ao autêntico contra-relógio em que decorreu a negociação Casaroli-Quartin, o chefe do Governo reconhece que a explicação da Santa Sé «foi um tanto tardia (...) mas finalmente chegou há momentos».

d.r.

Desconhece-se se é que alguma vez chegou a ser redigida a versão «hard» do discurso de Marcello. Esta comunicação é, obviamente, a «soft». Respeitando o compromisso assumido, Marcello faz uma brevíssima citação da nota do Vaticano, para frisar que, durante a audiência, «nenhuma palavra foi dita que pudesse significar ofensa a Portugal, menor atenção pela sua dignidade, juízo sobre a sua política, interferência nos seus assuntos internos». Numa leitura um tanto abusiva da nota, Caetano afiança que o Vaticano «declara que a audiência (...) não teve qualquer significado político». Manifestamente satisfeito com a explicação arr ancada à Santa Sé, o Presidente do Conselho termina a sua comunicação pondo um ponto final no conflito: «Tudo está esclarecido. As relações entre Portugal e a Santa Sé podem voltar à cordialidade antiga».

Só depois da «conversa em família» é que Quartin Bastos tem tempo, paciência e disponibilidade para redigir os telegramas relativos às duas audiências com Casaroli. No primeiro telegrama (n° 74), dá conta, ainda que em linguagem cifrada, da discussão travada Acerca do valor da nota do Vaticano: se uma «comunicação verbal», ainda que de «caracter oficial», ou se uma «nota diplomática».

O telegrama refere uma conversa do Papa com o cardeal, no domingo de manhã, segundo a qual Paulo VI «estava muito admirado que a nota publicada no Osservatore Romano (...) não tivesse surtido qualquer efeito junto do Governo português».

O telegrama seguinte (n° 75) informa que, antes da segunda audiência ao português, Casaroli tinha conferenciado com o próprio Papa. Ao fazer a entrega da nota, o cardeal pedira ao Governo de Lisboa que «não considerasse aquele documento como uma desculpa formal da Santa Sé, mas que visse nela apenas um esclarecimento, uma precisão daquilo que se passara na audiência». Quartin acrescenta que Casaroli, «ao despedir-se, aludindo à sua recentíssima viagem à Finlândia, observou: `Isto é mais uma prova de que a pessoa nunca se deve ausentar do seu lugar...'».

A pedido do Vaticano, a divulgação do comunicado é sustida durante mais de um dia. Viria a ser publicado após uma prévia comunicação ao Núncio nos matutinos de dia 9, com tratamento de primeira página e na íntegra. A versão da Santa Sé, que satisfizera plenamente as autoridades portuguesas, é de pronto contrariada por um dos participantes na audiência. Em visita à Dinamarca, a convite do Partido Social-Democrata, o presidente do MPLA dá uma conferência de Imprensa. Agostinho Neto reafirma que tanto ele como os seus camaradas de armas haviam sido recebidos na qualidade de homens políticos e não na de simples católicos. Garante, por outro lado, que o Papa manifestara o seu apoio à luta pela causa da independência e lhes tinha dito que rezaria por eles.

«ESPERO QUE NÃO SE REPITA»

CONVIDADO a comentar as declarações de Neto (não publicadas em Portugal), o director da Sala de Imprensa do Vaticano, monsenhor Vaillanc, limita-se a dizer que elas «condenam-se a si próprias por não corresponderam aos factos».

O Vaticano, porém, há muito que encerrou o assunto. É certo que o comunicado da Secretaria de Estado é divulgado pela Sala de Imprensa no dia 10. Apesar disso, ele será pura e simplesmente ignorado, quer pelo «Osservatore Romano» quer pela Rádio Vaticano, que silenciam ostensivamente a comunicação de Marcello Caetano. Portugal só voltará a ser notícia a 28 de Julho, com o «Osservatore Romano» a dar grande relevo, na primeira página, à morte de Salazar.

No mesmo dia chega a Roma Eduardo Brazão, que retoma as suas funções de embaixador. É o ponto final na tempestade que assolou as relações entre a S anta Sé e a «Nação Fidelíssima». A 31, Brazão é recebido por Casaroli: uma audiência prolongada, inevitavelmente tensa, em que os dois diplomatas passam em revista os incidentes do mês e justificam as suas posições. No final, o cardeal despede-se do embaixador: «Espero que isto não se repita.»

* com Refinaldo Chilengue, correspondente em Maputo

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: jpcastanheira@expresso.impresa.pt

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