Expresso 50 anos

Ílhavo: “Ir ao bacalhau agora é como quem vai dar um recado. Nós chegávamos a fazer viagens de 9 meses”

Manuel Louvado e Jeremias Vilarinho Ferreira, antigos pescadores de bacalhau: andaram à linha nos dóri na Terra Nova nos anos 1950 e 60
Manuel Louvado e Jeremias Vilarinho Ferreira, antigos pescadores de bacalhau: andaram à linha nos dóri na Terra Nova nos anos 1950 e 60
RUI DUARTE SILVA

Terra de pescadores, Ílhavo guarda a memória da faina do bacalhau, que lançou milhares de homens no Atlântico Norte à procura de sustento. Eram meses no mar, longe das famílias, em condições difíceis. Hoje a pesca continua a ser dura, mas o isolamento já não é tão grande, e ganha-se bom dinheiro. E a sustentabilidade passou a reger as frotas.

Ílhavo: “Ir ao bacalhau agora é como quem vai dar um recado. Nós chegávamos a fazer viagens de 9 meses”

Marina Almeida

Jornalista

Ílhavo: “Ir ao bacalhau agora é como quem vai dar um recado. Nós chegávamos a fazer viagens de 9 meses”

Rui Duarte Silva

Fotojornalista

Jeremias Vilarinho Ferreira, 83 anos, “nascido, batizado, casado e natural da Gafanha da Nazaré”, tem um amor à vida que celebra a cada frase. Está reformado de 50 anos na pesca, 19 na faina do bacalhau. “Primeiro fui moço, verde, que é o primeiro ano, depois maduro, pesquei quatro anos à linha, na Gronelândia e na Terra Nova”, conta, sobre a ponte que liga ao Santo André, arrastão transformado em museu, no Jardim Oudinot, em Ílhavo. Cumprimenta Manuel Louvado, também, ele, pescador dos tempos duros do bacalhau. Andavam nos dóris, pequenos botes de madeira que eram largados aos 60 do navio principal com um homem a bordo, que lançava a “linha de mão” com 900 anzóis. Enchiam o dóri de peixe e regressavam ao navio principal, dez horas depois se fosse preciso, para a segunda parte do trabalho.

“Você não se acredita, mas ainda hoje sonho que ando no mar”, diz Manuel. Tem 75 anos, nasceu na Murtosa, mas veio para Ílhavo “pequenito”, para o bairro dos pescadores. O pai já era contramestre. Manuel Louvado começou no Allain Villiers, com 16 anos. “Andei à linha até 1968, depois é que fui para o arrasto no navio maior da frota bacalhoeira, o David Melgueiro”, conta, enquanto percorremos o navio que a autarquia de Ílhavo entendeu musealizar, para mostrar a realidade destes homens.

Manuel recorda a vida dura nos pequenos barcos, dentro do grande navio que chegou a ser a sua casa durante nove meses e dez dias
RUI DUARTE SILVA

Manuel aponta a função para cada elemento do barco, indica os nomes como quem fala de uma família próxima: soldado, lata, laracha, pau de carga. Percorre o convés, o porão, desvenda as camaratas e os camarotes de madeira, a cozinha, a casa das máquinas. O local onde, depois de chegarem de oito ou dez horas no mar, os pescadores ainda amanhavam, escalavam, tiravam caras e samos ao bacalhau. O descanso era pouco, mas não sem antes comer a chora, a sopa de cabeças de bacalhau que aconchegava o estômago dos velhos pescadores. “Ainda hoje gosto de uma boa chorinha”.

Os choros do mar

No enorme porão do Santo André preserva-se a memória da salga. Nesta enorme barriga, situada abaixo do nível do mar, reduzia-se o tamanho do enorme monte de sal que embarcava com a tripulação no início da viagem. Era aqui que terminava o ciclo do bacalhau, num ramerrame que podia durar meses, dependendo do estado do mar e do peixe que se conseguia apanhar. “Ir ao bacalhau agora é como quem vai dar um recado. Nós chegávamos a fazer viagens de nove meses. Eles agora vão com contratos de três meses”, diz Jeremias. O frio e o isolamento, além do trabalho duro, eram o dia-a-dia de milhares de portugueses na Terra Nova.

“Em 1960 o salário era 12 ou 13 contos em seis meses de mar. Depois chegávamos a terra e não havia trabalho a bordo. E era o inverno cá”. A carreira de Jeremias nos dóris acabou em 1963, depois de cair ao mar. “Disse que tinha medo de arriar – arriar é pescar no dóri. Não me queriam dar a dispensa, eu pescava bem felizmente”. Foi para o Maria Teixeira como encarregado dos filetes, anos depois chegou a ser motorista. Quando se reformou, em 2001, andava no espadarte em Espanha. Ganhava “800 contos”, quatro mil euros. “O mar tem boas lembranças para os de fora. Para os que andam lá tem muitos choros”.

Manuel e Jeremias são dois dos milhares de homens que se fizeram ao mar, à procura de melhor vida. Tal como eles, muitos escaparam à tropa e à Guerra Colonial. “Só no período do Estado Novo há 22 mil homens, de Vila Praia de Âncora até à Fuzeta, que foram ao bacalhau. A nós interessa-nos recolher esses depoimentos”, diz Nuno Costa, diretor do Museu Marítimo de Ílhavo (MMI). A preservação da memória, a par da divulgação da história e vida do mar, e da sensibilização para o ambiente, é uma das áreas de trabalho da instituição. O portal Homens e Navios do Bacalhau é um arquivo digital, com informação sobre os homens e os navios que fizeram as campanhas bacalhoeiras no século XX.

30 bacalhaus no aquário

Os homens da pesca à linha, nos pequenos dóris, vão sendo cada vez mais difíceis encontrar. “A linha foi até 1974, pessoas com 65 anos já não andaram à linha”, explica o diretor, antropólogo de formação. Com ele conhecemos as salas do museu, por onde já passaram este ano 65 mil visitantes. “Até ao fim do ano vamos atingir perto de 90 mil, é dos museus de gestão municipal mais visitados”, aponta. A maior parte dos visitantes são portugueses. Aqui pode-se percorrer um lugre bacalhoeiro construído à escala, mostrando “o que seria passar seis meses a bordo de uma casquinha de noz desta dimensão, o que seria pescar bacalhau nos pequenos dóris”.

Inaugurado em 1937, o MMI foi enriquecido há dez anos com o aquário dos bacalhaus, onde 30 peixes pairam perante os olhares dos visitantes. Aqui a luz ambiente é reduzida, e todos os olhares se concentram no aquário e nos peixes – uma paz. Nuno Costa sorri: “há muita gente que vem com os filhos aos domingos de manhã para relaxar”.

O aquário dos bacalhaus é um dos pontos altos da visita, mas o museu tem muito mais para mostrar – belíssimas coleções de conchas e algas, a construção de embarcações na Ria de Aveiro, as migrações dos naturais da região por todo o país. No aquário, todos os peixes são da espécie Gadus morhua, o bacalhau que é pescado e consumido pelos portugueses. São alimentados de dois em dois dias com peixe magro, atividade a que os visitantes podem assistir, bem como à reprodução, que acontece entre janeiro e março.

“A pesca mais civilizada do mundo”

O aquário mostra a “espécie viva, mas também traz a atualidade e a sensibilização para a preservação dos oceanos”, diz Nuno Costa quando passamos para a sala seguinte onde está a exposição “Plasticus Maritimus, uma espécie invasora”, com o lixo que a bióloga Ana Pêgo apanhou nas praias. É uma das exposições temporárias que o museu tem atualmente. Logo à entrada, recebe-nos “Mar Oceano: legado de Mário Ruivo”, dedicada ao legado do biólogo e oceanógrafo português, pioneiro na defesa dos oceanos.

O Aquário dos bacalhaus no Museu Marítimo de Ílhavo
RUI DUARTE SILVA

O armador Aníbal Paião, administrador da Pascoal & Filhos, não lhe poupa elogios: “o professor Mário Rui era uma enciclopédia sobre os oceanos e prestigiou muito Portugal”. O empresário, economista, filho e neto e sobrinho de gente ligada à faina do bacalhau, cresceu a bordo dos navios. “Aqui há 30 ou 40 anos, ninguém falava de sustentabilidade. A partir dos anos 80 isto levou uma grande volta, não se tomam decisões sobre a gestão dos recursos sem ser com pareceres científicos, estabeleceram-se limites às capturas”, diz, para defender que “no Atlântico Norte temos a pesca mais civilizada do mundo”.

É lá que estão atualmente os seus navios, o Cidade de Amarante e o Pascoal Atlântico, dois dos nove navios-fábrica para a pesca do bacalhau por arrasto que Portugal tem. Os nove navios portugueses estão todos sediados no Porto de Aveiro e “produzem anualmente entre 20 a 25 mil toneladas de pescado, de forma sustentável”, diz Aníbal Paião. Pescam na Noruega, Svalbard, onde andam os melhores pesqueiros de bacalhau do mundo, e no Canadá. A bordo, seguem sempre observadores, monitorizando todo o processo. “O stock está em ótimo estado de conservação”, assegura o empresário, que é também dirigente associativo e presidente dos amigos do Museu Marítimo de Ílhavo.

Fazer uma viagem e comprar um carro

A frota portuguesa abastece cerca de 2% de consumo. “Nunca fomos autossuficientes”. Importamos bacalhau de Noruega, Islândia e Canadá. Esta é uma das questões do setor, a braços com falta de mão-de-obra. No Cais dos Bacalhoeiros, onde estão sediadas grande parte das empresas, sucedem-se os anúncios de trabalho. “Estão a ir buscar indonésios, filipinos, gente que vem certificada. Eu aqui tenho tudo com cédula portuguesa. Não faço qualquer tipo de discriminação, mas se puder criar emprego para portugueses crio”, refere.

Aníbal Paião, empresário: “É muito importante que esta malta nova venha para os navios”
RUI DUARTE SILVA

O empresário garante que “o rendimento médio desta pesca é compensador”. O pessoal de mar recebe uma percentagem da receita bruta do navio. “Pode ir por viagem de milhão e meio a dois milhões e meio de euros. A mestrança, contramestre e cozinheiro, estão a ganhar um por cento sobre estes valores. Eles recebem só de receita bruta 20 mil euros, mais o salário, subsídios”, explica. Há quem prefira receber de uma só vez, outros recebem por adiantamento, faseado, para assegurar um rendimento mensal estável. Os navios saem duas a três vezes por ano. Aníbal Paião conta que, há uns anos, havia muitos que chegavam a terra e compravam um carro. “Numa viagem compravam um carro. Quem é que fazia isso? Ninguém”, diz. “É muito importante que esta malta nova venha para os navios”.

Para além da mão-de-obra, manter o consumo de bacalhau é outra questão importante. Os portugueses consomem em média 60 quilos de peixe per capita por ano, metade é bacalhau. “Qual é o maior desafio que tem a indústria do bacalhau? É encontrar uma solução para que os níveis de consumo de bacalhau se vão mantendo”, diz o empresário. A empresa orgulha-se de ter criado o bacalhau demolhado ultracongelado há 30 anos. “Íamos para feiras e em todo o lado víamos a palavra conveniência: que conveniência é que tem o bacalhau seco? Cortámos o bacalhau, demolhámos o bacalhau como deve ser, lombos de um lado, postas finas para o outro. Fomos, no fundo, fazer o óbvio. Criámos um conceito novo. Fomos apelidados de loucos”, diz Aníbal Paião. Nos últimos anos, criaram uma empresa de refeições pré-cozinhadas.

O Argus, depois do Santa Maria Manuela

Em frente à Pascoal & Filhos , está fundeado o Argus, o lugre bacalhoeiro que integrou a “Frota Branca” de pesca portuguesa, a única em atividade durante a II Guerra Mundial. “O navio foi abandonado em Aruba. Saiu de Portugal em 1974 e andava no Caribe a fazer de love boat [com o nome Polynesia]. Foi posto em hasta pública para ir para a sucata, mas aquilo era como quem me matava, o meu avô reformou-se lá, o meu pai foi lá piloto. Era o navio almirante da frota branca, temos o livro do Allain Villiers... Tínhamos acabado de fazer o Santa Maria Manuela… montámos uma operação em oito dias”, diz Aníbal Paião.

Gémeo do Creoula e do Santa Maria Manuela, que foi recuperado pela Pascoal em 2010 e vendido à Jerónimo Martins seis anos depois, o Argus está à espera de uma nova vida. Deverá ser entregue à autarquia para ampliar o Museu Marítimo de Ílhavo com um polo dedicado aos veleiros.

Em Ílhavo vai-se guardando a memória.

“Você não se acredita, mas ainda hoje sonho que ando no mar”.

O Argus, o lugre bacalhoeiro que integrou a “Frota Branca” de pesca portuguesa, a única em atividade durante a II Guerra Mundial. está no Cais dos Bacalhoeiros, em Ílhavo
RUI DUARTE SILVA

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