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O que nos conta a livraria mais antiga de Évora? E a chapelaria? Uma reportagem em seis lojas históricas da cidade alentejana

O que nos conta a livraria mais antiga de Évora? E a chapelaria? Uma reportagem em seis lojas históricas da cidade alentejana
antónio pedro ferreira

Os monumentos contam história, mas ‘as gentes’ da cidade de Évora contam-nas de forma diferente. Reunimos seis histórias de seis lojas com tradição

Évora é a cidade histórica de Portugal que respira Roma no seu conhecido templo de Diana, barroco com a Capela dos Ossos e a época medieval com a Sé Catedral. As muralhas do Castelo, cujas pedras empilhadas separam a antiga da nova Évora, percorre a cidade de uma ponta à outra e faz relembrar os antepassados, não fosse esta cidade Património Mundial.

Mas a história não se vê ou não se sente apenas nos grandiosos monumentos. As pessoas e os seus negócios completam as gerações do quotidiano da cidade. Por isto, o Expresso saiu em reportagem à procura das lojas mais antigas da cidade de Évora, na sua inquestionável rua comercial, a “rua João de Deus”, que guia quem a sobe até à principal praça da cidade, a praça do Giraldo.

Por volta das 9h30 de sábado, da manhã alentejana, as primeiras saídas à rua são para beber café no sítio habitual. “Bom dia, Sr.João!” - e já está o café a ser tirado sem que o habitual cliente o tenha de pedir.

A conversa começa quase sempre com o mesmo tema: “ainda agora começou o dia e já está tanto calor”, diz a senhora que entrou no café há dois minutos e já está a beber o seu café curto. “Hoje chega aos 38 graus”, responde o dono do estabelecimento. Já todas as lojas têm as portas e janelas abertas de par em par, a convidar quem passa a entrar.

“A idade é um posto”: a loja mais antiga de Évora

A nossa primeira paragem foi na “Drogaria Azul”, a loja que faz esquina com a rua João de Deus. Aberta desde 1896, é muito provavelmente a loja mais antiga da cidade de Évora - segundo o seu dono e outros comerciantes com quem o Expresso falou.

E não é preciso muito tempo dentro da loja para o perceber. De um lado está a antiga máquina de escrever, do outro há antigas faturas expostas na parede e artigos de jornal com a sua folha castanha, símbolo do passar do tempo.

Os clientes iam entrando e foram raras as vezes em que a loja ficou vazia enquanto o Expresso fazia a entrevista. O dono não estava, “ele agora vai mais para o campo, desde que se desabituou da loja depois da pandemia”, explica o seu filho, Augusto Silva, que agora toma conta do espaço na grande maioria dos dias.

Mostrou o velho livro de receitas, fossem elas medicinais ou de cerveja artesanal, “uma relíquia hoje em dia, antigamente era só um caderno para escrever coisas”. Augusto explica que, “na altura, as drogarias eram uma coisa muito semelhante às farmácias. Faziam-se aqui os produtos e os cremes”. Mas os tempos foram evoluindo e agora as drogarias são “as lojas que têm tudo”, isto porque as farmácias especializaram-se nos medicamentos e as drogarias tiveram de expandir a sua oferta.

Augusto Silva explica ao Expresso que o comércio mudou muito ao longo do tempo, “agora os supermercados e as grandes superfícies específicas de cada área fazem grande concorrência. Está muito mais difícil, as pessoas já não sobem aqui à cidade [dentro das muralhas] para fazer as compras”, e por isso, grande parte das drogarias da cidade estão a fechar.

“Vivemos do facto de sermos uma loja histórica, dos clientes habituais e do turismo, com a venda de materiais vintage portugueses”, remata o comerciante.

Chapéus para proteger do sol alentejano

As queixas de Maria Angélica Rocha são as mesmas, mas as suas vendas espelham esta nova realidade: “o negócio está mau, muito mau. Sejam portugueses ou turistas, clientes há muito poucos”.

Tem uma chapelaria debaixo dos arcos da praça do Giraldo cuja gerência divide com a sua irmã. Um negócio que herdaram do pai, que decidiu comprar a loja e transformá-la numa chapelaria em 1935.

As duas irmãs renovaram um pouco a loja, mas quiseram manter toda a fachada intacta, o balcão continua a ser o mesmo e as prateleiras também, apesar de agora serem forradas com um papel preto e branco com um desenho irregular, quase abstrato.

“Se as pessoas precisam de um chapéu vão à Internet ou às grandes superfícies”, diz ao Expresso, mostrando a sua preocupação com o negócio de família que gostaria de manter.

As prateleiras de gerações e o amor pelos livros

A livraria “Nazareth” assume as suas antigas prateleiras de madeira que contam os anos das gerações da família Nazareth: já são mais de cem.

“Eu sou a quarta geração da família na loja”, diz ao Expresso Pedro Nazareth. “O meu bisavô (avô do meu pai) que vem de Motrinos, uma pequena aldeia ao pé de Reguengos de Monsaraz, veio trabalhar muito cedo para a cidade, na praça do Giraldo”.

Depois de muitos anos, o dono da loja onde o bisavô de Pedro trabalhava acabou por ir embora da cidade e deu a pequena loja ao seu dedicado empregado. “Era uma loja de tudo: papelaria, tabaco e livraria. Mas, na altura, os livros ocupavam só duas ou três prateleiras.”

E foi a partir dessas “duas ou três prateleiras” que a livraria começou a expandir-se. Foi já o avô de Pedro Nazareth que deu a ideia de restringi-la ao primeiro andar da loja, altura em que se tornou a livraria de elite de Évora.

Nessa época, escritores como Vergílio Ferreira eram clientes assíduos da livraria “Nazareth”, que não só tinha os melhores livros da cidade, como fazia Tertúlias “sobre tudo e mais alguma coisa, e estavam todos cá em cima, a pensar, a falar e a fumar”.

Depois de o avô de Pedro Nazareth ter falecido, a livraria passou por uma época difícil, já que o pai de Pedro e a sua irmã trabalhavam fora e a gestão ficou entregue a sócios. Para piorar a situação, em meados de 2000 apareceu a concorrência: os supermercados, mais livrarias, as lojas online. “Os números não estavam nada bons”, resume o livreiro.

Em meados de 2014 assume a gerência da livraria e procurou atualizar o negócio “com os gifts, aquelas compras rápidas, e os livros escolares, que agora representam grande parte dos nossos lucros”.

Hoje, o negócio está no verde e Pedro Nazareth trabalha à distância, confiando na sua equipa, que fica em Évora. Visita-os ao fim-de-semana, sempre que pode, já que é presidente executivo da empresa Eletrão, em Lisboa.

Ao mostrar fotografias, postais e antigos documentos, símbolos dos longos anos de existência da livraria, remata ao Expresso: “nós não somos uma livraria como a Fnac ou qualquer outra loja desse género, estando na praça do Giraldo e fazendo parte das lojas com tradição, damos uma experiência a quem nos visita”.

É um café com história, por favor

Das 14 mesas da esplanada do café “Arcada”, sobravam duas. Os eborenses saem pela manhã para tomar o habitual café de sábado. Os chapéus protegem do sol do verão alentejano e a música ambiente faz a manhã calma andar a passo lento até ao almoço.

Em plena praça do Giraldo, a esplanada fica entre a Igreja de Santo Antão e o chafariz da praça do Giraldo, que são passagens obrigatórias para quem visita a cidade alentejana. A grande maioria das mesas são ocupadas por pessoas idosas que se juntam para conversar. Mas há mesas com uma só pessoa, acompanhadas pelos jornais que seguram.

José Coelho é o mais recente gerente do café “Arcada”, que já passou por várias mãos. Em actividade há pouco mais de um ano - depois de terem ganho o concurso público para a sua exploração - foi com o apoio da Câmara Municipal de Évora que voltaram à “verdadeira essência do café ‘Arcada’”, perdida com a sua antiga gerência, segundo diz ao Expresso.

“Antigamente, o café era conhecido por ser o café onde se fechavam negócios agrícolas, o café de elite. E ainda há mais anos as senhoras não podiam entrar,” partilha com o Expresso o eborense.

Mantiveram o chão, a característica porta giratória e algumas das mobílias. Trabalham como café e pastelaria, mas também servem almoços em formato buffet. Recuperaram ainda a pequena papelaria situada à entrada do café. É um pequeno cubículo onde uma empregada jovem está rodeada de jornais e revistas.

Dos tecidos às roupas

José Santos é dono da grande maioria da ‘Casa Finita’, uma loja de tecidos que existe desde 1949. Ainda hoje é uma casa de referência para os eborenses e que expandiu o seu espaço de negócio para uma segunda loja, que está localizada do outro lado da rua, só é necessário dar três ou quatro passos para entrar, já que têm vista para o interior uma da outra.

Não é o único negócio de José Santos, que é um dos donos da “Eborina”, uma loja de roupa – a mais antiga da cidade – que veste os alentejanos para casamentos e outros eventos festivos. “Tenho clientes que visto desde ‘gaiatos’ e continuam a vir cá”, diz revela.

Ambas as lojas, situadas na rua João de Deus, sentiram o abalo da crise e da concorrência, mas José Santos diz que o negócio não corre mal. Ao ser questionado pelo Expresso se alguma das lojas poderá passar para a geração dos seus filhos diz que estão ambos a trabalhar fora de Évora: “gostava muito, mas nenhum deles parece querer. Vou ter de os convencer a ficar aqui com a ‘Eborina’, pelo menos”.

Loja vintage que sobreviveu com material vintage

A loja de Hélia Martins fica perto da “Eborina” e abriu portas, pela primeira vez, em 1925. Nos seus primeiros anos de vida vendia peças e máquinas agrícolas e trabalhava em parceria com uma empresa lisboeta.

O pai de Hélia, Hélio Martins, começou a trabalhar na loja com 20 anos e era gerente. Os tempos foram passando e a empresa lisboeta faliu. Hélio acabou por comprar as quotas e ficou com a loja para sua exploração. Mas na década de 1990 “o investimento na agricultura baixou e muitas lojas começaram a fechar aqui em Évora”, partilha com o Expresso.

O pai foi introduzindo material de drogaria e um negócio de cópia de chaves. Por volta dos anos 2000, Hélia foi trabalhar para a loja, para ajudar o pai.

Hoje em dia toma conta do negócio sozinha, mas a loja mudou de cara. “O negócio começou a dar muito prejuízo, porque quem trabalha com a agricultura ou para as áreas que pediam o nosso material, acabam por não subir à cidade para fazer as compras”, isto por causa do aparecimento das grandes superfícies fora das muralhas da cidade.

Em 2016, e com pouco dinheiro para investir, encontraram uma marca de caixas, potes, placas e materiais de decoração estilo vintage. “Tinha de ligar com a nossa velha loja, porque estas prateleiras que vê, antes tinham materiais agrícolas, agora seguram as caixas. São as mesmas, nada mudou”. Manteve o negócio da cópia de chaves, que aprendeu com o seu pai e as vendas voltaram ao verde.

Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail: taribeiro@expresso.impresa.pt

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