Opinião

Diário da Peste. Alguém mexeu na aparelhagem geral do mundo e diminuiu o som

Diário da Peste,
11 de Maio

Como se as mulheres e os homens e as crianças e os cães e até os próprios automóveis e as máquinas em funcionamento ainda não estivessem à vontade para fazer todos os sons habituais.
O volume exterior da cidade está baixo.
Alguém mexeu na aparelhagem geral do mundo e diminuiu o som.
Uma amiga do Brasil escreve-me:
“Queria ter um altifalante como um senhor lá de Ipanema.
Dizem que lá do seu décimo andar, de frente para a praia, ele armou sua caixa de som na varanda.
E lá do alto ele avisava pelo seu altifalante: Aí, ó rapaz de blusa azul, ó da bicicleta, você mesmo! vai pegar coronavírus, hein...!
Aí, a senhora do maiô florido, cabelo arrumado e batom vermelho, a senhora sim! vai pegar coronavírus, hein...!
E o senhor passou seu dia apontando e gritando do seu décimo andar. É o que contam.”
Ela vive no Rio, está apavorada.
O Brasil ultrapassou os 11 mil mortos e morreu ontem Sérgio Sant'Anna, “um dos principais escritores brasileiros, aos 78 anos, vítima de coronavírus.”
Alguém mexeu na aparelhagem geral do mundo e diminuiu o som - é isso mesmo.
Um Deus que não vire as costas ao progresso técnico. Um Deus que se aperfeiçoe.
Em termos de bem e mal, tudo está resolvido. Mas há máquinas novas.
O desemprego atinge níveis da Grande Depressão de 1929 nos EUA e, na Guatemala, mulheres à beira da estrada seguram uma bandeira branca.
Acenam a bandeira branca quando passa um carro ou uma mota.
Sem emprego, pedem comida a quem pára.
Bandeira branca de rendição.
A Air France vai introduzir controlo de temperatura nos voos e um ciclista profissional italiano esteve durante os dias mais duros a entregar pizas.
Em Turim, de bicicleta, entregava pizas e gelados como estafeta.
Queria saber o nome dele. Qual o nome?
Uma lesma pode esconder-se na sua concha por três anos para se proteger do mau tempo.
É preciso estudar os animais.
Vem aí mau tempo.
Lista de utopias.
Substituir utopias que ocupam um grande espaço por micro-utopias.
Uma utopia que seja transportável no bolso.
Uma miniatura; capaz de ser praticada por um bicho sozinho.
Uma actividade utópica de manhã, a substituir exercícios físicos de mãos e pés.
“María Branyas, de 113 anos, é agora a pessoa mais velha a superar o novo coronavírus.”
À noite pesadelo/imagens.
Mulheres ou homens com bandeiras brancas às janelas da própria casa.
Não saem, têm medo.
Pedem comida a quem passa na rua.
O palácio dos projectos dos Kabakov.
Recolha de pequenas utopias de pessoas da antiga União Soviética.
Uma: construir umas asas de anjo e depois colocar as asas às costas durante dez minutos, três vezes ao dia.
Como um medicamento; posologia - dez minutos, três vezes ao dia durante dois meses.
E, ao fim de dois meses, um homem terá mudado para melhor.
É a utopia de Solomatkin, motorista de Kishinev.
E imagino duas pessoas que não se conhecem.
Uma precisa da outra. É urgente.
Cada um levará uma bandeira branca para se identificarem na cidade.
Mas quando chegam à rua vêem que há milhares de pessoas com uma bandeira branca.
Uma chuva tremenda na noite de ontem; frio e chuva e depois menos chuva.
Cães encharcados, satisfeitos.
Talvez Deus leve também bandeira branca, alguém diz.
E daí não o encontrarmos.
Fecho a janela, abro a janela, fecho a janela.
Uma quase frase bíblica esta. E o senhor passou seu dia apontando e gritando do seu décimo andar.
É o que contam.

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