Opinião

Diário da Peste. A informação é o fogo do século e o século está frio

Diário da Peste,
10 de Maio

Um ajuntamento de pessoas em volta da informação.
E sim, a informação é o fogo do século e o século está frio.
Imagino alguém a tatuar uma notícia na testa; a notícia da vitória dos aliados na II Guerra ou do fim da pandemia. Ou algo pessoal.
Uma notícia tatuada na testa.
Escrever um livro a partir disto.
Que notícia tatuarias na testa para que todos lessem?
Eis uma pergunta.
Fazer questionários por essas ruas que agora recuperam o som.
Brasil. Inaugurado hospital de campanha, construído em 38 dias, no estádio Maracanã.
Para doentes graves.
Um terço das mortes por Covid-19 nos EUA “pode estar relacionadas com os lares”.
Alguém com oitenta anos diz que foi perdendo a vontade de falar nas últimas semanas.
Estou quase mudo, diz.
Mudez não orgânica.
Tão desesperado que estou mudo.
Uma mudez por desistência.
Mas noutros lados, grita-se.
Suíça. Centenas protestam contra as medidas de confinamento.
Alemanha: milhares de pessoas saem à rua para protestar contra restrições.
Avanço na cabeça mais do que nos pés.
Vacina e experimentações em humanos.
Pensar no trabalhador que cede o braço de trabalho para uma picada experimental. A estranheza.
Robusto braço cede gentilmente uma veia à escolha.
Imagino-o a segurar um cartaz na rua.
Como em muitos países pobres: onde se vende ouro e cabelo na mesma frase.
Um braço, agora.
“Google e Facebook adiam regresso aos escritórios para 2021”.
Os romanos dividiam a população em sete classes.
Em latim, proletarii: a classe que não tinha nenhuma riqueza - nem terras, nem dinheiro.
A palavra proletário tem a mesmo origem de prole.
O proletário só tinha filhos - a prole - nada mais.
Um proletário do século XXI sem filhos é um problema etimológico.
Alguém me diz isto ao ouvido.
As pessoas hoje sorriem de uma forma desequilibrada.
Agora quando riem, riem um pouco mais do que o necessário.
Como se tivessem baralhado o riso e o choro.
Perderam o domínio dos músculos principais da face.
Os músculos do rosto caíram ao chão e estão agora confundidos. Talvez na posição errada.
Numa certa cidade da Indonésia, quem quebrar as regras de confinamento é fechado numa casa assombrada.
Não há casas assombradas para todos.
As ruas recuperam o som aos poucos.
Imagens de Veneza em silêncio.
Marinetti propunha que os canais de Veneza fossem esvaziados por completo e depois tapados com cimento.
Assim, dizia ele, podiam construir-se ali fábricas e produzir-se algo de útil.
Manifestos, manifestos.
Olho para baixo. Pés destreinados procuram caminho velho
Para que serve a beleza quando estão todos em casa?
Uma pergunta também possível.
Curioso ver o som que os humanos põem em movimento no exterior e que desaparece quando estes se recolhem nos quartos e janelas.
A floresta em comparação com a cidade é muda.
O ruído e a palavra são formas do bicho humano não se sentir só.
E de afirmar que não está na floresta.
Mas há uma mudez de floresta que está a sair de casa para a cidade nestes dias.
As pessoas agora na rua falam mais baixo, como se alguém estivesse a dormir.
Mais e mais notícias, e ainda muro branco e dois cães impávidos; só entendem o velho fogo.

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